LITERATURA E COMUNICAÇÃO DE MASSA NO BRASIL: razão comunicativa versus razão instrumental

AUTORA: ISABEL VIRGINIA DE ALENCAR PIRES

(Texto atualizado de acordo com o Novo Acordo Ortográfico)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Letras. Área de concentração: Literatura Brasileira. Linha de Pesquisa: História da literatura e sistemas culturais.

Orientador: Prof. Dr. Gustavo Bernardo Krause.

Rio de Janeiro, Novembro/2002

RESUMO 

Esta dissertação tem por objetivo analisar a relação entre a literatura e os meios de comunicação de massa no Brasil. De tal ponto de partida, pretende-se discutir a questão da chamada identidade cultural brasileira, à luz do conceito de “duplicidade cultural”, que caracteriza não apenas a cultura brasileira, mas a de todos os países latino-americanos. O estudo está dividido em duas partes. Na primeira parte, argumenta-se que o processo de falência do paradigma positivista foi acompanhado do processo de emergência dos mass media, num cenário que teve como eventos principais os acontecimentos das I e II Guerras Mundiais, além de outros fatores específicos no âmbito da ciência. Na segunda parte, toma-se o discurso jornalístico como o representante paradigmático do mass media, tomado como uma terceira forma discursiva. Por fim, após fazer uma análise dos folhetins publicados em jornais e da Belle Époque do Brasil, a dissertação se encerra com uma abordagem da “identidade brasileira” na escrita cética machadiana, que teria inaugurado, na literatura brasileira, uma nova técnica de escrita e uma nova condição de ficcionalidade. 

ABSTRACT

This text aims to analyze the relationship between literature and the mass media in Brazil. From such a starting point, we intend to discuss the issue of the so-called Brazilian cultural identity, in the light of the concept of “cultural duplicity”, which characterizes not only Brazilian culture, but that of all Latin American countries. The study is divided into two parts. In its first part, it is argued that the process of bankruptcy of the positivist paradigm was accompanied by the process of emergence of the mass media, in a scenario whose main events were the events of the First and Second World Wars, in addition to other specific factors in the field of science. In the second part, journalistic discourse is taken as the paradigmatic representative of the mass media, taken as a third discursive form. Finally, after analyzing the serial books, published in newspapers, and the Belle Époque of Brazil, the dissertation ends with an approach to the "Brazilian identity" in Machado's skeptical writing, which would have inaugurated, in Brazilian literature, a new writing technique and a new condition of fictionality.


A meus pais

Hilarino Pires (in memoriam)

        e Maria Hilma Arraes. 

Para

Marcela e Augusto, filhos.

Agradecimentos

Antes de ser um quesito “obrigatório” na rotina acadêmica, uma dissertação é, também, o resultado do processo – insubstituível – de aprendizagem exercido ao longo do curso de Mestrado. Em outras palavras, não se forma um mestre sem que este tenha sido, antes, aluno. Não se faz um aluno sem a experiência da aula. Assim, pois, cada dissertação traz, necessariamente, a marca da vivência da sala de aula como forma de contribuição para a sua construção. Sou imensamente grata aos professores de quem tive a oportunidade de ser aluna no Curso de Mestrado em Literatura Brasileira da UERJ: Flávio Carneiro, Ivo Barbieri, João Cezar de Castro Rocha, Terezinha Barbieri, Victor Hugo Adler Pereira e Gustavo Bernardo, e cujos ensinamentos, com certeza, se fazem presentes nesta dissertação. Nos processos adotados pelos professores em sala de aula, muitas vezes estiveram presentes – sobretudo nos famosos “seminários” dos alunos – os “imponderáveis”, que Roberto DaMatta chama de “anthropological blues”, mas que, longe de nos fazer recuar, apenas nos provocam e estimulam a prosseguirmos no caminho da aprendizagem.

Agradeço particularmente ao professor João Cezar de Castro Rocha, pela leitura atenta de uma versão preliminar de dois capítulos deste trabalho, cujos comentários me foram de muita valia, e ao professor Victor Hugo Adler Pereira, pelas inúmeras dicas, e pelos esforços empregados no sentido de proporcionar, a nós, estudantes de Letras, um contato com a linguagem teatral, além de ceder o seu acervo bibliográfico particular, numa atitude que permitiu viabilizar, de modo concreto, o acesso dos alunos a muitos dos textos estudados. À professora Antônia Cristina de Alencar Pires, minha irmã, agradeço as gratificantes trocas de ideias e os livros generosamente cedidos.

Agradeço especialmente ao senhor Paulo Ubirajara de Jesus, funcionário da Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ, pela excelência no atendimento e disponibilidade para procurar e reservar livros, mesmo por telefone, o que muito ajudou na operacionalização da pesquisa. Como não poderia deixar de ser, agradeço ao professor Gustavo Bernardo Krause, meu orientador, pelos seus cursos na graduação e na “pós”, pelos livros cedidos, pelas indicações de leitura, pela leitura das muitas versões deste trabalho, pela troca de ideias – e, ainda, pela infinita paciência dispensada às minhas desorientações, e pela eficiência com que me ajudou a atar os fios soltos das minhas dispersões. 

A meu marido, Robson, agradeço os preciosos sinônimos com que me brindou na hora do sufoco, além, claro, da compreensão, do apoio e da afetividade necessários ao desenvolvimento de todo trabalho.


Apresentação

A arte não pode revelar a verdade sobre a arte sem a dissimular. (Pierre Bourdieu, in As regras da arte)
A técnica é em si mesma ótima, enquanto instrumento indispensável de vida humana evoluída, mas é essencialmente instrumento social e a sua maior ou menor incidência humana educativa depende enfim da maior ou menor humanidade da sociedade que a emprega. (Della Volpe, in Crítica de um paradoxo tardo-romântico)

Houve um tempo em que escrever era uma arte. Tomava-se de uma folha de papel em branco, e, com tinta, pena, galhofa e melancolia, no dizer de Brás Cubas, transformava-se a folha branca – talvez ainda com o auxílio de algum piedoso mata-borrão –, em página seleta de literatura. No papel branco, não se escrevia, apenas: o texto era pintado, esculpido, tecido, bordado, lavrado... Algumas vezes, alinhavado e até costurado.

Hoje em dia, não se escreve – digita-se. Ou recorta-se, copia-se, cola-se e “deleta-se” o texto nesse artefato técnico que, ao lado do celular, concorre ao título de “oitava maravilha” do mundo. Os tempos mudaram. Paulo Coelho, o Mago da vez, entrou para a Academia Brasileira de Letras, instituição fundada e presidida por largo tempo por Machado de Assis, o Bruxo do Cosme Velho. Entre um mago e outro, os critérios também mudaram.

Na primeira metade do século XX, Walter Benjamin percebeu, com perspicácia, as mudanças no interior da narrativa. Para ele, a primeira mediação técnica no texto é a que se opera justo entre a mão e a fala, quando a narrativa deixa de ser oral e passa a ser escrita. Benjamin percebia essa passagem como a “decadência da arte de narrar”.

Há mais de cem anos, Machado de Assis observava que, no Brasil de sua época, muito pouca gente sabia ler e escrever, e, entre estas, pouquíssimas sabiam escrever “letra de mão”. A letra cursiva era, então, uma técnica manual de escrita a que apenas as pessoas cultas do Brasil do século XIX tinham acesso.

No século XXI, o analfabetismo brasileiro, como fantasma a ser exorcizado, ainda persiste, tornando mais que nunca pertinente o conceito de “cultura ornamental” (Coutinho), de que se serviram alguns estudiosos para nomear a cultura da sociedade brasileira oitocentista, ao mesmo tempo burguesa e escravocrata. Em tempos de “globalização” e de “pós-modernidade”, os bens culturais no Brasil ainda continuam “ornamentais”, restritos à elite econômica e social do país. Este fato tem sérias repercussões sobre as intenções “modernizantes” dos governos, que esbarram sempre no velho problema do “fracasso escolar”. Por outro lado, apesar deste contexto desfavorável, não são poucas as crianças brasileiras que, muitas vezes, aprendem suas primeiras letras diretamente no teclado e na tela de computador, só depois então passando à velha e boa cartilha, a mesma em que aprenderam a ler seus avós. Talvez algum dia a “letra de mão” e o analfabetismo desapareçam em definitivo, tão completamente como desapareceram os bondes, de dentro dos quais se podia ver passar muitas coisas. Também eles passaram.

Desde o surgimento da imprensa, em 1450, literatura e técnica andam juntas, deixando sem ter muito o que fazer os famosos “copistas” medievais. A invenção de Gutenberg, indubitavelmente, deu início a uma revolução que viria a repercutir decisivamente na literatura, dando um importante passo para o processo de industrialização do livro, e, consequentemente, para a popularização da literatura.

A dissertação “Literatura e comunicação de massa no Brasil: razão comunicativa versus razão instrumental”, ao propor uma análise da relação da literatura brasileira – definida por Mattoso Câmara Jr. em seus Ensaios machadianos como uma “literatura meio ingênua e sem sofisticações” (CÂMARA JR, 1962, p. 51) – com os meios de comunicação de massa, resultantes de um intenso e extenso processo tecnológico, não tem por mira investigar a relação da obra literária com os artefatos técnicos, analisando as formas que a literatura brasileira assumiria diante da técnica.

O texto também não se dedica à análise da chamada “literatura de massa”, buscando antes suscitar, no diálogo entre a literatura produzida no Brasil e os mass media, questões em torno da problemática da “duplicidade cultural” brasileira. O caráter de duplicidade da cultura no Brasil já foi abordado por diversos autores, entre eles, Gilberto Freyre, Jacques Lambert, Sérgio Buarque de Holanda, Roberto DaMatta. Luiz Eduardo Soares (1999), em seu texto intitulado “A duplicidade da cultura brasileira”, chama a atenção para o papel desempenhado pelos meios de comunicação de massa – sobretudo a televisão – num Brasil estruturalmente dicotomizado.

Analisando o “dilúvio de imagens” tecnológicas no mundo contemporâneo frente às imagens criadas pela literatura, Italo Calvino adverte, no texto Visibilidade, que “estamos correndo o perigo de perder uma faculdade humana fundamental: a capacidade de por em foco visões de olhos fechados, de fazer brotar cores e formas de um alinhamento de caracteres alfabéticos negros sobre uma página branca, de pensar por imagens” (CALVINO, 1990, p, 107). No entanto, para o escritor italiano, a materialidade da escrita, embora frágil, feita de papel e tinta, ultrapassa a sua condição, e é a única capaz de conferir forma igualmente às realidades e às fantasias, à exterioridade e à interioridade, ao mundo e ao ego, à experiência e à imaginação, “compostos pela mesma matéria verbal”, transcrita em caracteres tipográficos (op. cit., p. 114).

Do nosso ponto de vista, as imagens tecnológicas e as imagens literárias não estariam em “concorrência”. Dos textos literários analisados ao longo da dissertação – “vozes literárias” que, resguardando a dimensão crítica da cultura, percebem a cultura tecnológica de uma perspectiva essencialmente crítica –, elas surgem intercambiantes, abrigando tanto o mito do aparato tecnológico como a linguagem literária, “sistema mítico” (Barthes) e híbrido por excelência. Essas as questões que, longe de esgotar, a dissertação apresentada apenas suscita, trazendo-as ao debate.

Observando com um pouco mais de atenção, percebe-se que o texto, não aleatoriamente, possui uma forma espiralada, em analogia com o símbolo do infinito: um “oito deitado” que, porém, não se “fecha”, pressupondo-se que, atrás de si, ele forma muitos outros “oito deitados”, infinitamente. A imagem do símbolo do infinito foi utilizada por Gustavo Bernardo, ao discutir o conceito de literatura. Para ele, o estabelecimento de tal conceito é uma questão impossível de se esgotar em si mesma, produzindo uma circularidade em espiral, à semelhança do “mito do Uroboro, a cobra que tenta desesperadamente devorar o próprio rabo, indicando os dois extremos do esforço intelectual humano: a necessidade e a impossibilidade” (BERNARDO, 1999b).

Ao abordar o diálogo da literatura com a tecnologia de massa, a presente dissertação toma como ponto de partida a implicação do naturalismo brasileiro de Aluísio Azevedo com o “olhar fotográfico”, em O cortiço. Com a fotografia, o processo de reprodução de imagens tornou-se acelerado, e “a mão foi liberada das responsabilidades artísticas mais importantes, que agora cabiam unicamente ao olho” (BENJAMIN, 1986, p. 167). Também é ela que fornece a base para o pleno desenvolvimento do cinema, vasto campo da ficcionalidade e da técnica. Prosseguindo, o texto faz uma abordagem do contexto do pós-guerra, culminando na análise da expansão da “era da informação” e sua influência na literatura contemporânea brasileira, por meio da presença das “caixas pretas” (Flusser) tecnológicas nos textos literários.

Na segunda parte, o texto busca introduzir, na discussão “História versus literatura”, o discurso jornalístico – considerado como representante paradigmático do mass media – como uma terceira forma discursiva. Após fazer uma digressão até os folhetins e a Belle Époque do Brasil, a dissertação se encerra com a abordagem da chamada identidade brasileira, vista pelo olhar cético machadiano. Em espiral, pois – ou seja, parecendo regredir, mas não se fechando no mesmo ponto – o texto faz ainda uma aproximação da escrita machadiana com a técnica cinematográfica, retomando deste modo o ponto de vista de Benjamin, de que “se o jornal ilustrado estava contido virtualmente na litografia, o cinema falado estava contido virtualmente na fotografia” (op. cit., p. 167). Assim, se a literatura do Naturalismo, de viés positivista, possui estreitos vínculos com a fotografia, como chamam a atenção diversos estudiosos, a escrita machadiana, contrapondo-se a ela, abre caminho para uma nova técnica de escrita e uma nova condição de ficcionalidade.

Segundo Mircea Eliade, a primeira função do mito é ordenar o caos, pois, “para viver no mundo é preciso fundá-lo – e nenhum mundo pode nascer no ‘caos’ da homogeneidade e da relatividade do espaço profano” (ELIADE, s/d, p. 36). Com uma sequência não linearizada de análise, esta dissertação longe está de pretender erigir mitos, buscando, antes, desmi(s)tificá-los.         


SUMÁRIO 

PARTE I 

CAPÍTULO 1 – A FALÊNCIA DO PARADIGMA POSITIVISTA E O “SENTIMENTO DE ABSURDO”

1.1 – O mal-entendu naturalista   

1.2 – O pensamento ocidental e o sentimento de absurdo 

1.3 – O sujeito absurdo e o teatro de Nelson Rodrigues 

1.4 – As veredas do Grande Sertão e o absurdo roseano 

CAPÍTULO 2 – UM NOVO REFERENCIAL: A INFORMAÇÃO E O “HIBRIDISMO” DA LITERATURA 

       2.1 – Os “contos-reportagem” de Rubem Fonseca e a subversão dos valores sociais

2.2 – A palavra-imagem e o “teatro da dissolução” em Hotel Atlânticode João Gilberto Noll 

2.3 – As “caixas pretas” na literatura brasileira do final do século XX 

2.4 – O hibridismo na literatura regionalista da atualidade 

PARTE II 

CAPÍTULO 3 – AS RELAÇÕES ENTRE LITERATURA, HISTÓRIA E JORNALISMO 

3.1 – O surgimento do romance 

3.2 – Os primeiros jornais e a emergência da “razão prática” 

3.3 – O feuilleton francês e o folhetim brasileiro

3.4 – Imprensa e literatura na Belle Époque brasileira  

CAPÍTULO 4 – LITERATURA  VERSUS JORNALISMO: “DISPUTA DISCURSIVA” CONTEMPORÂNEA? 

     4.1 – O ceticismo nas relações entre literatura, História e jornalismo 

4.2 – Literatura, História e jornalismo em Machado de Assis: o olhar cético 

4.3 – O excêntrico Rubião: metade luxo, metade inculto

CONCLUSÃO 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 

NOTAS 


INTRODUÇÃO

À primeira vista, esta dissertação parece pretender se filiar à tradição benjaminiana, estabelecida no clássico texto A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (1935/36), de investigar a relação da obra artística com os artefatos técnicos, analisando as formas que a primeira assume diante dos segundos. O trabalho de Flora Süssekind, Cinematógrafo de letras (1987), empreendendo uma análise das relações entre literatura e técnica desde fins dos anos 1880 à década de 1920 no Brasil, seria exemplo de tal linha de abordagem. Segundo a autora, seu trabalho busca “examinar de que maneira esse estreitamento de contatos com o horizonte técnico [do período] passa a enformar a produção cultural. Não se trata mais de investigar apenas como a literatura representa a técnica, mas como, apropriando-se de procedimentos característicos à fotografia, ao cinema, ao cartaz, transforma-se a própria técnica literária” (SÜSSEKIND, 1987, p. 15).

A análise aqui proposta, porém, embora possa por vezes se aproximar da linha de pesquisa que pretende “sugerir uma história da literatura brasileira que leve em conta suas relações com uma história dos meios e formas de comunicação, cujas inovações e transformações afetam tanto a consciência de autores e leitores quanto as formas de representação literárias propriamente ditas” (op. cit., p. 26), tem preocupação fundamental diversa.

Ao se propor investigar o diálogo da literatura brasileira com os meios de comunicação de massa, este trabalho pretende trazer à tona, sobretudo, a questão da chamada “duplicidade cultural brasileira” (SOARES, 1999), que encerra dois códigos distintos e inconciliáveis. Tal duplicidade, para diversos estudiosos, seria característica não apenas do Brasil, mas de todos os países pertencentes ao “Terceiro Mundo”, e que, inseridos na sociedade ocidental por força de “descobrimentos”, passaram pela experiência – traumática – da condição de colônia. Assim, a disparidade subsistente no Brasil entre o moderno e o arcaico, o litoral e o sertão, o norte e o sul, o culto e o inculto, o civilizado e o bárbaro, o progressista e o autoritário, o público e o particular constituiria a “duplicidade” dos códigos culturais brasileiros, apoiados, de um lado, na tentativa de acompanhar o “progresso” da sociedade ocidental, e, de outro, nos valores tradicionais e conservadores, tornando-se, na contemporaneidade, um sério entrave para o desenvolvimento do país.

Não obstante a declarada vocação da formação social brasileira para a multiplicidade, a diversidade, a variedade, os estudos que se ocupam dos problemas inerentes ao Brasil tendem, em sua grande maioria, a assinalar o caráter de duplicidade da cultura brasileira, percebendo, assim, a multiplicidade de um território de dimensões continentais de um ponto de vista bipolarizado. Como observa Antônio Cândido, em prefácio a uma das edições de Raízes do Brasil (1937), de Sérgio Buarque de Holanda –   para Cândido, um estudo “construído sobre uma admirável tipologia dos contrários” – “a reflexão sobre a realidade brasileira foi marcada, desde Sarmiento, pelo senso dos contrastes e mesmo dos contrários – apresentados como condições antagônicas em função dos quais se ordena a história dos homens e das instituições” (CÂNDIDO, 1967, p. xlii), caracterizando assim a dicotomização do pensamento latino-americano. Por outro lado, tal dicotomização permite operar a diversidade concreta da realidade brasileira, buscando dar conta dos aspectos mais visíveis do objeto em estudo, se aproximando assim do real, embora não seja o próprio real.

No âmbito dos estudos de literatura, a dualidade brasileira entre o moderno e o arcaico – uma das faces da “duplicidade” da cultura no Brasil – foi abordada por Roberto Schwarz, que apontou como ela opera na literatura romântica brasileira, especificamente na obra de José de Alencar, o “fundador da literatura brasileira”. Apropriando-se do conceito adorniano de “fratura formal” – segundo o qual as “fraquezas artísticas” de uma obra deixam de remeter a limitações do autor, para indicarem impossibilidades objetivas, cujo fundamento seria social, apontando para impasses históricos (SCHWARZ, 1990, p. 161) – Schwarz percebe, na obra de Machado de Assis, uma consciência da dicotomia presente na sociedade brasileira oitocentista – ao mesmo tempo escravista e burguesa – explorada com esmero, segundo o ponto de vista do crítico, pelo autor de Memórias póstumas de Brás Cubas.

A condição de “duplicidade” da cultura no Brasil, aliada ao passado colonial e escravocrata da sociedade brasileira, permite que se abram amplas perspectivas de análise para a literatura brasileira de modo geral. Se, de um lado, a colonização representou desde o início – ou seja, desde mesmo o descobrimento do Brasil – a submissão aos valores do colonizador, deixando em si marcas dessa relação autoritária, de outro lado, permitiu o contato com a onda de modernidade pela qual passava a própria Europa, desde o Renascimento. A marca por assim dizer “registrada” da literatura brasileira residiria justamente na importação de moldes literários da cultura europeia – verificada por Schwarz na obra alencarina – e, ao mesmo tempo, a luta contra esses mesmos moldes, na busca da afirmação, de um caminho próprio, e do reconhecimento internacional.

No limiar entre a herança arcaica – o aspecto desumano da colonização e da escravidão que a acompanhou – e os valores liberais, tão caros à moderna cultura ocidental, ambos legados pelo colonizador, é necessário frisar, a literatura brasileira se funda marcada por contradições, que caracterizaram todo o período romântico brasileiro. A subjetividade romântica, com sua valorização do “gênio individual”, torna-se, paradoxalmente, racionalizada, fundada que é no paradigma positivista, e constituindo mais uma das inúmeras contradições inerentes ao Romantismo e aos temas explorados por ele: a “solidão”, a “espontaneidade”, a “expressão dos sentimentos”, a “imaginação”. Para o Romantismo brasileiro, sobretudo, se fazia necessário explicar a fundação da nacionalidade brasileira, espécie de “subjetividade coletiva”, embora de um ponto de vista etnocêntrico. Essa racionalização, calcada no olhar do colonizador, se evidencia não só na obra de José de Alencar, o representante máximo do Romantismo brasileiro, mas também na Canção do exílio (1843), de Gonçalves Dias, forjada numa flagrante duplicidade: de um lado, o “cá” – o familiar, o conhecido, o Europeu, e, de outro, o “lá” – o diferente, o desconhecido, o exótico; enfim, o “Novo Mundo”.

É importante observar que a falência do paradigma positivista – o qual dava sustentáculo tanto ao nacionalismo dos românticos quanto ao Naturalismo, fundados, ambos, na “explicação” – ocorre concomitante à expansão dos meios de comunicação de massa. É precisamente o surgimento de um novo paradigma na cultura ocidental, baseado na “informação” e não mais no ideário positivista, que permite que novas relações culturais e sociais se inaugurem, entre elas, o forte “intercâmbio semiótico” – para se apropriar de termo utilizado por Terezinha Barbieri (1996) – da literatura com os meios de comunicação de massa.

Para Luiz Eduardo Soares, a coexistência, no Brasil, dos ideais da igualdade (código moderno) e da hierarquia (código tradicional) produz um “hiato”, ou “lacuna social”, onde se multiplica não a riqueza, mas a miséria, não o progresso, mas os valores subalternos de uma sociedade pretensamente “democrática”. A sociedade brasileira contemporânea, baseada numa estrutura hierárquica social e econômica rígida, herdada desde os tempos coloniais, sofre, ao mesmo tempo, os efeitos da era da comunicação de massa, em que as relações individuais são permeadas pela “audiência televisiva” (Soares), tornando-se, deste modo, alvo de duas mensagens opostas e simultâneas: uma, direcionada aos direitos democráticos do indivíduo, e outra, cujo alvo são os valores pessoais e autoritários. Essa “mesclagem de hierarquia e igualitarismo” geraria um “híbrido” específico. Segundo o autor: 

A linguagem hierárquica é empregada para assegurar respeito e obediência, naturalizando as diferenças sociais; e a linguagem individualista é utilizada para justificar a indiferença diante do destino da gente comum. (...) Portanto, do ponto de vista dos vencedores (classe média e alta), o híbrido é um instrumento funcional para a conservação e naturalização da desigualdade, assim como para a legitimação do darwinismo social. Para a massa, entretanto, a duplicidade de mensagens funciona opondo obstáculos à melhoria da autoestima, da cooperação social e da participação política. (SOARES, 1999, p. 231)

Estudioso da cultura latino-americana, Jesús Martín-Barbero reconhece a importância dos meios massivos na segunda fase de modernização da América Latina – isto é, aquela que, ao contrário da primeira, que tinha como eixo de modernidade o ideal de Nação (“chegar a ser uma nação moderna”), passa a se associar à ideia de “desenvolvimento”. O “desenvolvimentismo”, de acordo com o autor, vigora na América Latina nos anos da “euforia” e dos “milagres econômicos”, “a partir do início dos anos 1960 e em alguns países desde alguns anos antes, até meados da década de 1970” (MARTÍN-BARBERO, 1987, p. 260), e tem fim com a crise mundial dos anos 1980 – conhecidos como a “década perdida” –, “que agrava na América Latina a contradição entre o caráter nacional da estrutura política e o caráter transnacional da estrutura econômica” (op. cit., p. 260).

Na análise da interseção da literatura brasileira com a cultura de massa – “uma cultura que, em vez de ser o lugar onde as diferenças sociais são definidas, passa a ser o lugar onde tais diferenças são encobertas e negadas”, na definição de Jesús Martín-Barbero (ibid., p. 180) – e na qual os meios de comunicação desempenham papel essencial, o conceito de “indústria cultural”, cunhado por Adorno, afigura-se fundamental. Observe-se ainda que “indústria cultural” implica, também, uma duplicidade, contraditória desde o nome, e que gera pontos de vista opostos entre os seus maiores estudiosos. De um lado, Adorno considera que a tecnologização e a cientifização do campo artístico – para ele, efeitos do “mito iluminista da razão” – provocam o “suicídio da arte” e a “regressão” na percepção artística (ADORNO, 1985). De outro lado, para o olhar nostálgico de Benjamin, saudoso de um tempo em que a “arte de narrar” era possível, esse fenômeno representa, no entanto, um “avanço”. Assim, para Benjamin, a “desauratização” da obra de arte, provocando a sua perda de autenticidade e o seu “valor único” – que constituem a própria “aura”, a “aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja” (BENJAMIN, 1986, p. 170) –, confere-lhe, paradoxalmente, “efeitos benéficos”. A vulgarização, ou “desauratização”, da obra de arte, permitida pela técnica, não configuraria, pois, do ponto de vista benjaminiano, um desvirtuamento, mas uma “divulgação para todos”, que teria como efeito “a politização do destinatário” (op. cit.)

Embora, para Barbara Freitag, “o termo Escola de Frankfurt ou a concepção de uma ‘teoria crítica’ sugiram uma unidade temática e um consenso epistemológico teórico e político que raras vezes existiu entre os representantes da Escola” (FREITAG, 1988, p. 33), este trabalho abriga, também, os conceitos desenvolvidos por outro conhecido “frankfurteano”: Jürgen Habermas. Em sua Teoria da Ação Comunicativa (1981), Habermas estabelece os conceitos de “razão comunicativa” e “razão instrumental”, segundo os quais a literatura, como bem cultural, pertenceria ao âmbito da razão comunicativa e ao “mundo vivido” das ideias (Lebenswelt), enquanto o segundo conceito diz respeito à tecnocracia que domina a produção massificada, aproximando-se, pois, do papel desempenhado pelos meios de comunicação de massa nas sociedades contemporâneas.

Sem se preocupar com uma rígida sequência linearizada de análise – considerando que não se trata de uma “história da literatura” –, este trabalho se divide em duas partes. A primeira parte tem como preocupação fundamental buscar apreender a implicação da falência do paradigma positivista para a emergência dos mass media na contemporaneidade, tendo como “pano de fundo”, além de outros fatores específicos no âmbito da ciência, os acontecimentos das I e II Guerras Mundiais, que precipitaram a cultura ocidental numa absoluta sensação de vazio, abandono e “absurdo”. Aceitando como pressuposto a evidente influência exercida pelos meios de comunicação de massa na atualidade, e tomando o jornalismo como o representante paradigmático dos mass media, a segunda parte do trabalho traz à discussão a relação entre História e Literatura, inserindo nessa equação um terceiro termo: o discurso jornalístico, que, assim como os dois primeiros, teve seu estabelecimento definitivo no século XIX. 


PARTE I

CAPÍTULO 1 

A FALÊNCIA DO PARADIGMA POSITIVISTA E O “SENTIMENTO DE ABSURDO”  

(...) as construções intelectuais da ciência constituem um campo irreal de abstrações artificiais, que, com sua mão ossuda, procuram agarrar a essência da verdadeira vida, sem jamais consegui-lo. Mas aqui na vida, naquilo que para Platão era o jogo de sombras nas paredes da caverna, pulsa a realidade genuína; o resto são derivativos da vida, fantasmas sem vida e nada mais. (Max Weber, in A ciência como vocação) 

Terei sequer tempo de indignar-me? Já mudaram de teoria. Assim, essa ciência que devia ensinar-me tudo, acaba na hipótese, essa lucidez cai na metáfora, essa incerteza resolve-se em arte. (Albert Camus, in O mito de Sísifo

As primeiras décadas do século XX foram palco de acontecimentos que mudaram, de forma irreversível, o curso do pensamento ocidental. Precisamente dois acontecimentos – a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais – evidenciaram a impotência da razão, tão preciosamente cultivada pelo pensamento hegemônico ocidental desde suas origens mais remotas. Erigindo ao poder a força da irracionalidade, tais acontecimentos revelaram, aos olhos atônitos da “nova era”, o quão pode ser absurda e sem sentido a existência humana. 

O pensamento europeu já manifestava um “clima de incerteza” mesmo às vésperas de 1914, quando eclodiu a Primeira Guerra Mundial. Para o historiador William McNeill, duas novas “cosmovisões” começaram por solapar as teorias positivistas e as ciências naturais que procuravam explicar, com “elegante clareza”, o universo. Além do marxismo, que desde fins da década de 1840 havia, com o materialismo histórico, desnaturalizado as desigualdades sociais e econômicas, desvelando o seu caráter de classe e, por isso, passível de mudança pela via revolucionária, a teoria evolucionista de Charles Darwin, proposta em 1859, pôs fim à concepção imutável do universo, e revelou, “ante os olhos surpreendidos da humanidade um panorama de história terrestre inimaginavelmente vasto em confronto com tudo que se havia sonhado até então” (McNEILL, 1972, p. 395). De outro lado, a física newtoniana, com suas categorias fundamentais de matéria, energia, espaço e tempo, foi definitivamente abalada, em 1905, pela teoria da relatividade de Albert Einstein, que propunha “que o espaço e o tempo fossem fundidos num só contínuo espaço-tempo” (op. cit., p. 395). Em tal contexto, as “ideias familiares” do esquema newtoniano se tornaram irremediavelmente ultrapassadas.

Paralelamente a essas “novidades” no campo da ciência, a internacionalização do capitalismo europeu a partir da década de 1870 – tentada como solução para a crise de superprodução decorrente do aumento da produtividade e da inelasticidade do mercado –, ao mesmo tempo em que promove a “ocidentalização” de países não europeus, provoca neles efeitos perversos, resultando em levantes, rebeliões e guerras civis localizadas.1 Como observa Nicolau Sevcenko (1983), o “processo de desestabilização das regiões periféricas ao desenvolvimento industrial consagrou a hegemonia europeia sobre todo o globo terrestre, que viu seus modos de vida, usos, costumes, formas de pensar, ver e agir sufocados pelos padrões burgueses europeus plasmados pelas potências do Velho Mundo” (op. cit., p. 44). Também a crença no infinito progresso científico e tecnológico, que seria acompanhado  de um progresso no campo da moral, da ética e do bem-estar social, gerada a partir do Iluminismo, começa a ser deixada de lado. Para o historiador francês Jacques Le Goff: 

Em meados do século XX, os fracassos do marxismo e a revelação do mundo stalinista e do gulag, os horrores do fascismo e principalmente do nazismo e dos campos de concentração, os mortos e a destruição da Segunda Guerra Mundial, a bomba atômica – primeira encenação histórica “objetiva” de um possível apocalipse –, a descoberta de culturas diversas do Ocidente (sic) conduziram a uma crítica da ideia de progresso. (...) A crença num progresso linear, contínuo, irreversível, que se desenvolve segundo um modelo em todas as sociedades, já quase não existe. (LE GOFF, 1992, p. 14) 

No âmbito da arte, a perspectiva, até então consagrada, sofreu deformações e, por fim, foi completamente abandonada por pintores, como Pablo Picasso, que buscavam formas que “só vagamente lembravam a realidade visível, para criar um padrão e sugerir um estado de ânimo” (McNEILL, 1972, p. 395). Dissociados da experiência puramente óptica, os novos experimentos artísticos que acabariam por culminar no amplo movimento designado por “Modernismo” buscavam sobretudo contrariar a perspectiva da tridimensionalidade, um dos fundamentos do Naturalismo, utilizada largamente com o objetivo de criar a “ilusão de realidade”. Wolfgang Iser, em seu estudo sobre o fictício e o imaginário, elementos inerentes, de acordo com ele, à condição de ficcionalidade, observa, com relação ao Naturalismo: 

A ficção preocupada com a explicação, na dissimulação de seu estatuto próprio, se oferece como aparência de realidade, de que ela, neste caso, necessita, pois só assim pode funcionar como a condição transcendental de constituição da realidade. (ISER, 1996, p. 24 – não grifado no original) 

No entanto, embora o Naturalismo tenha utilizado a tridimensionalidade como um dos seus elementos fundamentais, pretendendo deste modo uma “aparência de realidade”, esse movimento não se caracterizaria tão somente pela mera tentativa de “copiar o real” – de resto, impossível –, mas principalmente pela proposta de transpor, para a ficção, os métodos das ciências positivistas, utilizando-a como veículo de comprovação de uma “tese”. Em todo caso, na literatura brasileira naturalista, sobretudo no romance O cortiço, de Aluísio Azevedo, que busca comprovar a tese de que “o homem é o produto do meio e da raça”, pode-se perceber claramente o uso da terceira dimensão, com a presença da perspectiva de profundidade na narrativa. Tal utilização, nesse romance, buscaria essencialmente destacar dois elementos básicos: em primeiro plano, o cortiço, com suas casinhas intensamente procuradas pela “gente do trabalho” (AZEVEDO, 2000, p. 25), e, em segundo plano, a pedreira, o local de trabalho dos “cavouqueiros” moradores do cortiço. O cortiço e a pedreira, “tridimensionalizados”, cumpririam ainda a função de elementos estruturantes básicos, servindo assim de referente para as diversas dicotomias existentes no interior da narrativa: lavadeiras/cavouqueiros, homem/mulher, sobrado/cortiço, brasileiros/portugueses, etc., conforme destacadas fartamente por diversos estudiosos da obra, como Dirce Cortes Riedel, Rui Mourão e Carlos Faraco, em prefácios e posfácios às diversas edições da obra. 

A oposição básica cortiço/pedreira, verificada em O cortiço, serviria de referente para mais dois tipos de oposição existentes na narrativa: a primeira, entre o orgânico e o inorgânico – que remete à dicotomia vida/morte, simbolizada pela profissão das lavadeiras, que “iam despejando crianças com a regularidade do gado”, em oposição ao trabalho dos cavouqueiros na pedreira, temida como algo capaz de “mandar um para o demo” (AZEVEDO, 2000, p. 49) –, e, em segundo lugar, a oposição ideal/material. Enquanto a dimensão material encontraria na pedreira o seu símbolo “por excelência”, a dimensão ideal – literalmente citada na narrativa – seria representada, no naturalismo brasileiro de Aluísio Azevedo, pelas ambições pessoais de cada personagem, razão da própria luta do dia-a-dia: “Foi da supuração fétida destas ideias que se formou no coração vazio do Miranda um novo ideal – o título. / (...) não conseguiria nunca o lugar de contínuo numa repartição pública – o seu ideal! – setenta mil-réis mensais: trabalho das nove às três” (AZEVEDO, 2000, p. 28 e 63).

Aos domingos, dia de descanso dos cavouqueiros e das lavadeiras moradores do cortiço, será a pedreira que dominará, ao fundo, a paisagem, com seu pesado silêncio, em contraste com o intenso burburinho do primeiro plano, numa clara evidência de “naturalização” da cena: 

Sentia-se naquela quietação de dia inútil a falta do resfolegar aflito das máquinas da vizinhança, com que todos estavam habituados. Para além do solitário capinzal do fundo a pedreira parecia dormir em paz o seu sono de pedra; mas, em compensação, o movimento era agora extraordinário à frente da estalagem e à entrada da venda. (AZEVEDO, 2000, p. 41)

A pretensão naturalista de possuir “aparência de realidade” estaria presente mesmo nos trabalhos dos grandes pintores renascentistas, como Caravaggio, Velázquez, Bruegel, Ingres, entre outros, cuja técnica buscava reproduzir, com grande perfeição, a realidade, e cujas telas, encerradas nos museus de todo o mundo, são hoje patrimônio cultural da humanidade. Assim, verifica-se uma bem-sucedida tentativa, nas obras dos mestres da pintura de todos os tempos, de captar uma “aparência de realidade”, fixando-a na tela.

Em um conhecido ensaio no qual analisa as relações entre a linguagem e a pintura, concluindo que uma é irredutível à outra, Michel Foucault faz uma minuciosa pesquisa dos elementos que compõem o quadro de Velázquez,2 As meninas, para declarar, por fim, que a “representação da representação” que o quadro do pintor renascentista espanhol enfim representa se limita à sua condição de pintura, “na medida em que ele é quadro, isto é, fragmento retangular de linhas e cores”, submetido a uma “realidade material que as linhas e as cores depositaram sobre a tela” (FOUCAULT, 1992, p. 24). Embora o texto de Foucault não faça nenhuma alusão ou aproximação do quadro de Velázquez com a técnica da fotografia, a posição de um dos personagens retratados – situado numa porta ao fundo que se abre para o interior da sala onde se desenrola a cena – sugeriria, a partir do ponto de vista de Foucault, a apreensão da fugacidade do movimento, tal como ocorre na fotografia: 

Com um pé sobre o degrau e o corpo inteiramente de perfil, o visitante ambíguo entra e sai ao mesmo tempo, num balancear imóvel. Ele repete, sem sair do lugar, mas na realidade sombria de seu corpo, o movimento instantâneo das imagens que atravessam a sala, penetram no espelho, nele se refletem e dele ressaltam como espécies visíveis, novas e idênticas. (FOUCAULT, 1992, p. 26-27, não grifado no original) 

Cabe lembrar ainda que a dimensão “fotográfica” do Naturalismo – em especial da literatura brasileira naturalista – já teria sido desvendada em análises como a de Flora Süssekind, por exemplo, que implicitamente concebe o texto naturalista como uma fotografia que “registra” um dado instante do real, fixando-o e permitindo, como numa lâmina de laboratório, que este seja esmiuçado: 

Da literatura [naturalista] exige-se fundamentalmente objetividade. A ela caberia “olhar”, “enxergar” unidades. Tomá-las como ponto indiscutível e “retratá-las”. E fazer com que o leitor receba uma idêntica impressão de realidade; uma tranquilizadora sensação de que se inclui no círculo de uma identidade étnica, cultural e nacional fora de discussão. (SÜSSEKIND, 1984, p. 98) 

No entanto, embora a fotografia tenha a capacidade de ser “transcrição fiel” do real – que se torna, porém, bidimensional – por outro lado, as primeiras fotografias no Brasil eram, já, utilizadas muitas vezes para “melhorar” a realidade. Tal fato é observado por Gilberto Freyre, em Sobrados e mucambos, obra que analisa a fase de transição do poder das casas-grandes patriarcais e rurais para os sobrados urbanos, moradia de uma emergente classe média no século XVIII brasileiro. Segundo o sociólogo, essa fase, que coincide com a ascensão da figura do bacharel, branco ou mulato, é acompanhada de uma transição do retrato pintado para o daguerreótipo – “caracterizado por fornecer uma imagem única e não reprodutível” (SÜSSEKIND, 1987, p. 31) – e a fotografia. Nestes últimos, “o feio aparecia feio mesmo que fosse rico ou poderoso o retratado” (FREYRE, 1968, p. 622), ao contrário do retrato pintado, em que os mestiços “poderosos” eram “branqueados”.

Com o advento da fotografia colorida, surgiram nos Estados Unidos especialistas que “requintaram-se, nos últimos decênios do século XIX, em amaciar em louros e róseos novos-ricos, novos-poderosos e novos-cultos sararás, alaranjados ou mesmo pardos do Brasil e de outros países da América do Sul” (op. cit., p. 622). Porém, enquanto os retratos pintados coloniais se submetiam aos caprichos do senhoril, numa atitude subserviente, as fotografias coloridas do final do século XIX deformavam a imagem real, melhorando-a, por interesse comercial. “Era a competição do daguerreótipo com a pintura a óleo; da técnica com a arte do retrato” (ibid., p. 623). De qualquer modo, a fotografia colorida, deformando a realidade, “nem sempre pode servir, em tais casos, de ‘tira-teima’. Torna-se cúmplice da mistificação” (p. 625).

A respeito do livro de Aluísio Azevedo, é interessante notar ainda o modo pelo qual a imagem idealizada do “Novo Mundo”, forjada pelo Romantismo brasileiro, surgiria na perspectiva naturalista como que invertida, num giro de 180 graus, que buscasse revelar, por contraste, precisamente o seu revés, ou – como diz Glauber Rocha em roteiro do filme Deus e o diabo na terra do sol, se referindo à questão da colonização cultural e econômica do Terceiro Mundo – o seu “impasse” e a sua “impossibilidade” (citado por VENTURA, 2000), negados pela ideologia romântica no Brasil: 

E [Piedade] maldizia soluçando a hora em que saíra da sua terra; essa boa terra cansada, velha como que enferma (...). Sim, lá os campos eram frios e melancólicos, de um verde alourado e quieto, e não ardentes e esmeraldinos e afogados em tanto sol e em tanto perfume como o deste inferno (...). Lá, nos saudosos campos da sua terra, não se ouvia em noites de lua clara roncar a onça e o maracajá (...); lá não varava pelas florestas a anta feia e terrível, quebrando árvores; lá a sucuruju não chocalhava a sua campainha fúnebre (...); lá o seu homem não seria anavalhado pelo ciúme de um capoeira; lá Jerônimo seria ainda o mesmo esposo casto, silencioso e meigo, seria o mesmo lavrador triste e contemplativo, como o gado que à tarde levanta para o céu de opala o seu olhar humilde, compungido e bíblico. (AZEVEDO, 2000, p. 158)

Deste modo, a inversão da perspectiva da Canção do exílio, de Gonçalves Dias – poema escrito em 1843, em Coimbra –, na narrativa de O cortiço, sugeriria precisamente uma distorção por lentes, que utilizasse ainda uma sobreposição de imagens – ou propriamente uma montagem fotográfica –, com o fim de “fixar” uma outra “realidade”, distante e distinta da  ideia romântica de “nação brasileira”. No entanto, se a fotografia cumpriu inicialmente o papel de “fixador do real”, permitindo a concepção dos textos naturalistas como “fotográficos”, por outro lado foi essa mesma técnica – a fotografia – que se tornou, paradoxalmente, a base para o pleno desenvolvimento do cinema, um dos vastos campos da ficcionalidade.3 Além disso, ao trabalhar com o ilusionismo como um dos seus elementos principais, o Naturalismo – quer na literatura, na pintura, no teatro ou no cinema – tenta vivenciar uma espécie de “duplo” da realidade quotidiana, encerrando deste modo uma flagrante contradição. Assim, desde que surgiu, na literatura ou em outros campos do conhecimento humano, o Naturalismo se teria revelado um movimento assaz polêmico e controverso, encerrando em si contradições insolúveis que, necessária e dialeticamente, deveriam ser superadas. 


1.1 – O mal-entendu naturalista


 No bojo das contradições verificadas no Naturalismo, figuraria ainda a célebre polêmica suscitada pela aparição em Paris, em 25 de abril de 1878, do romance L’assomoir, de Émile Zola. Em prefácio à edição de 1979, intitulado “Le malentendu de L’assomoir”, Armand Lenoux comenta o escândalo que o romance de Zola provocou na sociedade francesa, à época do seu surgimento. O prefaciador procura destacar, em seu texto, justamente o caráter polêmico da obra: enquanto uns acusavam Zola de ter escrito “um ridículo panfleto dirigido contra os trabalhadores”, para outros, o romancista “tinha pelo povo um desprezo de burguês”. Zola, porém, segundo Lenoux, buscava esclarecer o seu próprio ponto de vista, rejeitando os rótulos de “panfletário” e de “desdenhoso”, e se autointitulando “naturalista”: “J’entends être um romancier tour court, sans épithète: si vouz tenez à me qualifier, dites que je suis um romancier naturaliste, ce qui ne me chagrinera pas.” (ZOLA, 1979 – citado por Lenoux, p. VIII). Assim, em meio às chamas do escândalo, e desprezado ostensivamente pela burguesia, “o sucesso de [L’assomoir] ganha o povo, que reprovou a imagem que Zola fez dele, mas que amou a força e a natureza do escritor” (Lenoux, p. VIII – tradução própria).

De modo idêntico ao ocorrido na França do século XIX, o naturalismo brasileiro também teria sido “mal-entendido”, suscitando, entre os seus estudiosos, controvérsia de opiniões – ao contrário dos atuais estudos sobre o Romantismo brasileiro, que se revelam parcialmente consensuais, pelo menos no que diz respeito à ideia, bastante consolidada neles, de que, naquele período, teriam sido forjados, para o Brasil, os conceitos de uma “literatura brasileira”, e, na esfera política, o de “nacionalidade brasileira”.

De um lado, Antônio Cândido, em seu conhecido texto De cortiço a cortiço, no qual faz uma comparação entre o romance de Aluísio Azevedo e L’assomoir, de Émile Zola, vê, na abordagem do tema da miscigenação racial, dado concreto da sociedade brasileira, uma realidade a “desmascarar”, ao mesmo tempo em que seria um elemento de superação da obra que lhe serviu de modelo. Assim, para o autor, a abordagem da problemática da realidade imediata, pelo Naturalismo no Brasil, seria uma superação do “texto segundo” em relação ao seu modelo, ao mesmo tempo em que denunciava essa mesma realidade. Isso se deve, segundo esse ponto de vista, à posição de “ambiguidade do intelectual brasileiro, que aceitava e rejeitava a sua terra, dela se orgulhava e se envergonhava, nela confiava e nela desesperava, oscilando entre o otimismo idiota das visões oficiais e o sombrio pessimismo devido à consciência do atraso” (CÂNDIDO, 1993, p. 139), o que constituiria, desse ponto de vista, uma contradição inerente ao Naturalismo brasileiro. Ao propor o determinismo do meio e da raça como fatores incontroláveis de degradação da sociedade, os intelectuais e os políticos da época perdiam de vista, segundo Cândido, “a dimensão mais acessível, que são os aspectos sociais, onde está a chave” (op. cit., p. 139), e que seriam desvelados somente mais tarde, com os estudos sociológicos de Gilberto Freyre.5

Para Flora Süssekind, de outro lado, longe de haver “desmascaramentos” da realidade social no Brasil, o que o texto naturalista faz é justamente “mascarar” as condições reais da sociedade brasileira oitocentista: 

Ao invés de proporcionar um maior conhecimento do caráter periférico do país, o texto naturalista, na sua pretensão de retratar com objetividade uma realidade nacional, contribui para o ocultamento da dependência e da falta de identidade próprias ao Brasil. Pressupõe que existe uma realidade una, coesa e autônoma que deve captar integralmente. Não deixa que transpareçam as descontinuidades e os influxos externos que fraturam tal unidade. Como o discurso ideológico, também o naturalista se caracteriza pelo ocultamento da divisão, da diferença e da contradição. E não é muito difícil reparar que não é só uma estética, mas uma ideologia naturalista o que se repete na ficção brasileira. (SÜSSEKIND, 1984, p. 39, não grifado no original).           

Assim, o que é apresentado por Antônio Cândido como contradição inerente ao Naturalismo brasileiro, decorrente de uma posição sobretudo “ambígua” do intelectual no Brasil, Flora Süssekind vê, nesse mesmo texto, um “ocultamento” da contradição de que é formada a sociedade brasileira. 


1.2 – O pensamento ocidental e o sentimento de absurdo 


Perdido em meio às próprias contradições e polêmicas, e abalado diante das novas descobertas, que substituíram os esquemas cosmológicos de explicação do universo, o mundo do final do século XIX e início do XX – dando lugar ainda ao “mundo inconcebivelmente minúsculo da física subatômica que se abria ao mesmo tempo sob os nossos pés” (McNEILL, 1972, p. 396) – é um mundo essencialmente confuso.

No “clima de incerteza” anterior à Primeira Guerra Mundial, que viria a culminar no rompimento do paradigma positivista, surge, na virada do século XIX para o XX no Brasil, a produção literária de um grupo de escritores, conhecidos – ou rotulados – posteriormente como “pré-modernistas”. Tal grupo de escritores, do qual fazem parte Euclides da Cunha, Monteiro Lobato e Lima Barreto, se contrapunha à literatura das “belas letras” então praticada, norteada pelo ideário positivista, e que tinha Coelho Neto, Olegário Mariano e Afrânio Peixoto – com sua definição de literatura como “o sorriso da sociedade” – como modelos paradigmáticos (SEVCENKO, 1985). Tratando de temas como a loucura, a morte, o isolamento do homem entre outros homens e a incomunicabilidade humana, a escrita de Lima Barreto, essencialmente fragmentária, se opõe não apenas aos “escritores de casaca” da Belle Époque brasileira, mas também aos projetos modernizantes da Primeira República no Brasil, ainda calcados em moldes positivistas: 

(...) nosso dever de escritores sinceros e honestos é deixar de lado todas as velhas regras, toda a disciplina exterior dos gêneros e aproveitar de cada um deles o que puder e procurar, conforme a inspiração própria, para tentar reformar certas usanças, sugerir dúvidas, levantar julgamentos adormecidos, difundir as nossas grandes e altas emoções em face do mundo e do sofrimento dos homens (...). (BARRETO, Lima. Impressões de leitura. Citado em PIRES, 1995, p. 48) 

Sem aprofundar a discussão sobre a obra de Lima Barreto, vista pela crítica literária da época como panfletária, resultante de um sentimento de inferioridade e revolta, importa-nos considerá-la como “sintoma” de uma época mergulhada na dúvida, na indecisão, para a qual as explicações positivistas já não mais funcionavam. Para McNeill, “alguns sustentam que a civilização ocidental estava, em realidade, à beira de um colapso em 1914 – quando, evidentemente, os europeus completaram o trabalho, mergulhando numa guerra de violência nunca vista” (McNEILL, 1972, p. 397).  Com os eventos das Primeira e Segunda Guerras Mundiais, a razão, tão cara ao pensamento ocidental moderno, passou a ser de todo inútil, soçobrando nos escombros que se espalhavam pela Europa de então. Com o horror da guerra, o sentimento de absurdo se impunha, como resultado da reflexão diante de um mundo caótico e conturbado.

Discutido filosoficamente na obra de Albert Camus ou dramatizado pelo teatro de Samuel Beckett, será o sentimento de absurdo da condição humana, como marca dos novos tempos, que tentará ser apreendido pelo pensamento ocidental do pós-guerra. Essencialmente, o ser humano em confronto consigo mesmo. Em 1943, antes mesmo do fim da Segunda Guerra Mundial, Albert Camus, discutindo sobre o suicídio, ou “se a vida merece ou não ser vivida”, pergunta-se: 

Qual é então esse incalculável sentimento que priva o espírito do sono necessário à sua vida? Um mundo que se pode explicar, mesmo com más razões, é um mundo familiar. Mas, pelo contrário, num universo subitamente privado de ilusões e de luzes, o homem sente-se um estrangeiro. (...) Esse divórcio entre o homem e sua vida, entre o actor e seu cenário, é que é verdadeiramente o sentimento do absurdo. (CAMUS, s/d, p. 16 – não grifado no original) 

Nas “peças sem enredo” de Samuel Beckett, figura de destaque do chamado Teatro do Absurdo, aquele sentimento é levado ao extremo. Para Martin Esslin, enquanto Sartre e Camus “apresentam sua noção de irracionalidade da condição humana sob a forma de raciocínio extremamente lúcido e logicamente construído” (ESSLIN, 1968, p. 20), deixando entrever, assim, uma “convicção implícita” no discurso lógico de herança platônico-aristotélica, o Teatro do Absurdo irá recusar quaisquer recursos racionais do pensamento discursivo: “o Teatro do Absurdo desistiu de falar sobre o absurdo da condição humana; ele apenas o apresenta tal como existe – isto é, em termos de imagens teatrais concretas.” (op. cit., p. 21).

Se em Esperando Godot – cuja estreia nos palcos parisienses foi em 1953 – a espera angustiante de um encontro que nunca se concretiza torna-se a “essência do absurdo” da peça, será em Fim de jogo (ou Fim de partida) – que estreou em Londres em três de abril de 1957 – que o absurdo beckettiano encontrará seu mais alto grau de refinamento – ou sua “quintessência”, por assim dizer. Nesta peça de Beckett, cuja ação se passa numa sala claustrofóbica que faz as vezes de abrigo, “o mundo, do lado de fora, está morto. Alguma catástrofe monumental, da qual os quatro personagens são – ou julgam que são – os únicos sobreviventes, matou todos os seres vivos” (ESSLIN, 1968, p. 56). Enquanto Hamm, velho e cego, é paralítico, permanecendo em sua cadeira de rodas o tempo todo, e seus pais, sem pernas, estão depositados em latas de lixo, o empregado Clov, por contraste, não pode se sentar: 

NAGG: O que é isso? / CLOV: Bolacha de água e sal. / NAGG: É duro! Eu não consigo! / HAMM: Tampa nele! / Clov empurra Nagg para dentro do latão, fecha a tampa. / CLOV: (Voltando ao seu lugar junto à cadeira) Se velhice ensinasse! / HAMM: Sente em cima dele. / CLOV: Não posso me sentar. / HAMM: É verdade. E eu não posso ficar em pé. / CLOV: É isso. / HAMM: A cada um a sua especialidade. (BECKETT, 2002, p. 50-1) 

Assim, a “tensão dramática” da peça, que para Esslin residiria na questão da partida ou não de Clov – abandonando à própria sorte as três pessoas que dependem dele – se concentraria antes na imagem por demais absurda de alguém condenado a passar toda a sua vida em pé, de um lado para outro, “entre quatro paredes”, sem jamais poder se sentar.

 

1.3 – O sujeito absurdo e o teatro de Nelson Rodrigues

 

Do mesmo modo que o microscópico e o particular obtiveram destaque nos campos da Física e da Biologia – no primeiro, com a física subatômica, e, no segundo, com a ênfase da teoria darwiniana no aspecto particular e único dos eventos evolutivos das diferentes espécies – a atenção também se voltaria para o indivíduo: um sujeito fragmentado e esfacelado diante de um mundo “em que tudo mudava e nada – a não ser a própria mudança – permanecia absoluto e eterno” (McNEILL, 1972, p. 396). Em tal contexto, a psicanálise, valorizando o “mundo interno” e privado do indivíduo, tão caótico quanto o mundo externo, pretende se erigir, com Freud, ao estatuto de ciência. Justificando o ponto de vista do seu ensaio sobre o suicídio, Camus, mais tarde, também o fará de uma perspectiva essencialmente individual: 

O suicídio nunca foi tratado senão como fenômeno social. Aqui, pelo contrário, para começar, importa-nos a relação entre o pensamento individual e o suicídio. Um gesto como este prepara-se, tal como acontece com uma grande obra, no silêncio do coração. O próprio homem o ignora. Uma bela noite, dá um tiro ou atira-se à água. (CAMUS, s/d, p. 14). 

Na esteira dessa valorização ocidental do íntimo, do individual e do particular – da qual o discurso psicanalítico apresenta um caráter revolucionário, colocando definitivamente o paradigma positivista sob xeque – surgem, no Brasil, as peças teatrais de Nelson Rodrigues, herdeiras ou “releituras” do realismo psicológico de Eugene O’Neill, dramaturgo norte-americano que pretenderia experimentar, no palco, uma fusão da psicanálise com a linguagem teatral. Conforme observa Victor Hugo Adler Pereira, “a história do teatro norte-americano e a carreira de sua principal figura de destaque nas primeiras décadas deste século [XX], o dramaturgo Eugene O’Neill, revelam o prestígio crescente da psicanálise e a transformação dos palcos em instrumento de divulgação e debate de suas teses” (PEREIRA, 1999, p. 69).

Nas chamadas “peças psicológicas” de Nelson Rodrigues introdutor da modernidade6 no teatro brasileiro, segundo os seus estudiosos –, o dramaturgo repudia a realidade, grosseira, caótica, hostil. No subconsciente, não é outra a imagem do real”, nos diz Sábato Magaldi (MAGALDI, in: RODRIGUES, 1981, p. 19). Nessas peças, das quais fazem parte, segundo Magaldi, A mulher sem pecado, Vestido de Noiva, Valsa nº 6, Viúva, porém honesta e Anti-Nelson Rodrigues, persiste o absurdo, na forma de “desejos disparatados e dos grandes delírios pautados na ótica da desrazão foucaultiana” (PEREIRA, 1999, p. 136). Sobretudo em A mulher sem pecado, na qual o personagem Olegário finge ser paralítico a fim de testar a fidelidade da mulher, o absurdo da situação culmina na alucinação, imaginada por ele, e que merece, de Sábato Magaldi, o seguinte comentário: 

Na exaltação, Olegário pensa que todos os homens deviam ser mutilados. E o delírio o leva a imaginar um quarto onde não sairiam nunca ele, Lídia e o suposto amante: “Olhando um para o outro, até o fim da eternidade”. O receio da infidelidade fixa Olegário nesta imagem absurda, incorporando o hipotético amante da mulher a um cotidiano atemporal. (MAGALDI, in: RODRIGUES, 1981, p. 13 – não grifado no original) 

A apropriação, pela obra de Nelson Rodrigues, do discurso psicanalítico, levaria, porém, a uma “saturação” de situações incestuosas, ao mesmo tempo em que os conceitos da psicanálise se tornariam, por outro lado, “diluídos” pelo senso comum. Essa paradoxal “saturação-diluição” da psicanálise pelo dramaturgo acabaria por caracterizar o aspecto grotesco verificado no universo rodrigueano (PEREIRA, 1999, p. 142), numa aproximação parodística, que teria por finalidade, segundo Victor Hugo Pereira, uma recusa à canonização do discurso psicanalítico, colocando-o deste modo sob xeque. De outro lado, os estudos de Augusto Meyer, fortemente centrados numa visão psicanalítica, marcam época, por sua vez, no âmbito da crítica literária. Em seu estudo sobre as Memórias póstumas de Brás Cubas, que inaugura o romance machadiano de segunda fase, “razão de ser” da crítica machadiana, Roberto Schwarz considera que: 

As observações e deduções de Meyer (...) são o ponto alto da crítica machadiana. Conservam poder de revelação notável, apesar do envelhecimento de seu quadro teórico, o que aliás ilustra a independência relativa entre conceituações adotadas e, de outro lado, a percepção literária e a capacidade de expressá-la. (SCHWARZ, 1990, p. 31). 

No horizonte da prosa ficcional brasileira, desponta a complexa obra, de caráter intimista, de Lúcio Cardoso, da qual os textos mais conhecidos são Crônica da casa assassinada e O viajante, que tratam de temas como a morte, a solidão e a violência de forma obsessiva. Como observa Ruth Silviano Brandão, para o escritor, a morte parece ser “uma obsessão tão permanente, que leva seu leitor a perceber a significação que lhe é dada e que se confirma à medida que a leitura de seus textos avança. Ela é, paradoxalmente, a razão da própria vida que, sem que se saiba, já a traz em sua origem mesma” (SILVIANO BRANDÃO, 1998, p. 26).

Analisando o texto cardosiano Mãos vazias, publicado em 1938, é ainda Ruth Silviano Brandão que chama a atenção, na obra de Lúcio Cardoso, para “uma insuportável sensação de vazio e de gratuidade da vida, [que] sobrecarregam uma narrativa lenta e opressiva, pobre de acontecimentos e pesada pela atmosfera de absurdo e desespero inexplicáveis e inexplicados pela protagonista principal” (op. cit., 1998, p. 32). Novamente, aqui, a “marca do absurdo”, irrompendo inexorável da escrita tortuosa e torturada de Lúcio Cardoso, que, ainda na palavra de Ruth Silviano, apoiada por sua vez nos estudos de Julia Kristeva sobre a depressão e a melancolia, seria uma “escrita melancólica” (idem, 1998, p. 26).

O “sentimento de absurdo” – que parece se espraiar por sobre limites meramente territoriais e/ou urbanos – conjugado ao elemento regionalista do sertão brasileiro, na prosa roseana, permitiria originar uma linguagem específica, ao mesmo tempo “particular” e “universal”. Desde o primeiro livro de contos Sagarana, de 1937, a obra de Guimarães Rosa revelou trilhar caminhos próprios. Nela, o absurdo torna-se patente em contos como “A terceira margem do rio”, do livro Primeiras estórias, de 1962, no qual o personagem encerrado na canoa navega despropositada e infinitamente num rio que também parece não ter fim nem propósito: 

Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia. (ROSA, 1975, p. 33) 

Vale ressaltar ainda que, como observa Paulo Rónai, em prefácio à terceira edição de Primeiras estórias, “tudo leva a crer que os livros de Guimarães Rosa suscitem mais tentativas de decifração que os de qualquer outro escritor brasileiro, e que estas os tornem ainda mais densos e mais cheios de significado” (RÓNAI, “Prefácio”. In: ROSA, 1975, p. lviii). O conto “A terceira margem do rio”, como toda a obra de Guimarães Rosa, não fugiria a essa regra: nele, a crítica tem descoberto simbologias e metáforas diversas, sobretudo ligadas à questão vida/morte. O absurdo da situação do homem na canoa – que pode ser vista como metáfora da condição humana perante a vida, neste caso representada pelo próprio rio, sobre o qual ele eternamente oscila –, é ainda considerado/narrado a partir do ponto de vista do filho, para quem a vida, tornada absurda e desprovida de um sentido objetivo, “era só o demoramento” (ROSA, 1975, p. 36).

O absurdo em Guimarães Rosa também se acharia nitidamente presente no conto “O cavalo que bebia cerveja”, também de Primeiras estórias. Esse conto narra a história do italiano, “estrangeiro às náuseas”, que mantinha um cavalo branco empalhado em um dos quartos de sua chácara, “meio ocultada” no sertão brasileiro. Nele, o horror e o absurdo da Segunda Guerra Mundial ecoam por entre as árvores cerradas, plantadas à volta da casa, à maneira de fortaleza que cerceia até mesmo o falar, pois “o horror se mostra, ao horror se alude, mas comunicá-lo seria impossível”, como diz Gustavo Bernardo, comentando uma fotografia da guerra da Bósnia, tirada pelo fotógrafo Gilles Peress (BERNARDO, 1999, p. 148): 

Seu Giovânio conversava mais comigo, banzativo: “Irivalíni, eco, a vida é bruta, os homens são cativos...”. Eu não queria perguntar a respeito do cavalo branco, frioleiras, devia de ter sido o dele, na guerra, de sua estimação. “Mas, Irivalíni, nós gostamos demais da vida...” Queria que eu comesse com ele, mas o nariz dele pingava, o ranho daquele monco, fungando, em mal assôo, e ele fedia a charuto, por todo lado. Coisa terrível, assistir aquele homem, no não dizer suas lástimas. (ROSA, 1975, p. 95).  

 

1.4 – As veredas do Grande Sertão e o absurdo roseano

 

Em seu único romance, Grande sertão: veredas, de 1956, no qual Guimarães Rosa firmaria definitivamente a sua proposta literária, o absurdo transborda na extensa fala de Riobaldo. Trabalhando com a memória individual, instrumento essencialmente falível, e, por isso, extremamente precário, a “história-relato” (Le Goff) de Riobaldo – o ex-jagunço Riobaldo Tatarana, de pontaria certeira, mas que “nunca tinha certeza de coisa nenhuma” (ROSA, 1986, p. 329) – se revela incerto, cheio de dúvidas e perplexidades: “mesmo eu não acerto no descrever o que se passou (...) nanje os dias e as noites não recordo (...). Agora, que mais idoso me vejo, e quanto mais remoto aquilo reside, a lembrança demuda de valor – se transforma, se compõe, em uma espécie de decorrido formoso” (ROSA, 1986, p. 301). Ou ainda: “Pelejei para recordar as feições dele [Hermógenes] e o que figurei como visão foi a de um homem sem cara” (op. cit., 1986, p. 508).

O imenso sertão roseano – por si só, infinitamente “absurdo” – encerraria em si as  “veredas absurdas”, abrigando os mais variados tipos, com suas histórias igualmente “absurdas”: Sô Candelário, o jagunço leproso, que “perseguia o morrer” ao mesmo tempo em que “forcejava por se sarar”, enquanto matava ferozmente; o jagunço Felisberto, que de repente se esverdeava todo e depois “virava era azul” (p. 356), por conta de uma bala que carregava dentro do corpo, impossível de ser retirada; o velho mendigo goiano-baiano, “homem no sistema de quase-doido” (p. 458), de “cabelos de ventania”, que tinha apenas metade do pé esquerdo, e que, não obstante, era o “velho da paciência” e da sabedoria; e muitos outros.

Além destes, personagens que fazem parte da memória de Riobaldo, outros figuram em outros relatos ouvidos por ele, e igualmente memorizados: Maria Mutema, a mulher, louca, que matou o marido derramando chumbo derretido em seu ouvido e depois passou a atazanar a vida do pacato padre do lugarejo, confessando amores inexistentes por ele; e o rapaz, “enlouquecido devagar”, que não queria adormecer, por medo de “não saber mais como se acordar outra vez, e no inteiro de seu sono restasse preso” (p. 374). O cego Borromeu, por sua vez, “aconselhando” o bando em marcha para a batalha final de Riobaldo, agora o Chefe Urutu Branco, seria uma espécie de metonímia do próprio sertão, a partir mesmo do ponto vista do narrador:Na meia detença, ouvi um limpado de garganta. Virei para trás. Só era o cego Borromeu, que moveu os braços e as mãos; feio, feito negro que embala clavinote. Sem nem sei por que, mal que perguntei: / — ‘Você é o Sertão?!’”. (ROSA, 1986, p. 523)

A guerra, feroz, do “sistema jagunço” era um “combate sem cabimento” (p. 185), ao qual Riobaldo aderira sem qualquer objetivo definido, guiado apenas pelos “olhos e tanto de Diadorim [nos quais] o verde mudava sempre, como a água de todos os rios em seus lugares ensombrados” (p. 252). Em tal combate, inimigos e aliados – zébebelos, hermógenes e riobaldos – mudavam constantemente de lado, “feito se” atravessassem a toda hora, sem se importar com o perigo, o soberano Rio-do-Chico do sertão, “acidente físico e realidade mágica, curso d’água e deus fluvial, eixo do Sertão”, na definição de Antônio Cândido (1983, p. 297).

A batalha travada na Casa dos Tucanos seria o ápice da absurdidade desse combate, no qual se empilham os corpos dos companheiros mortos num dos quartos, enquanto os cavalos zurram desesperados nos estábulos dias a fio, atingidos impiedosamente pelos tiros dos inimigos. Do ponto de vista do sentimento do absurdo reinante, à maneira camuseana-becketteana, a luta sertaneja descrita por Riobaldo, feroz, infinita e sem sentido, e cujo ódio, já diluído, “forjava as formas do falso” (ROSA, 1986, p. 318), poderia mesmo ser tomada como metáfora do próprio “absurdo-existir” humano: “Aí mesmo, no momento, fui ecogitando: que a função de jagunço não tem seu que, nem p’ra que. Assaz a gente vive, assaz alguma vez raciocina. Sonhar, só, não” (op. cit., p. 373).

O sentimento de absurdo, na obra de Guimarães Rosa, se revelará, deste modo, propriamente um “absurdo roseano”, margeado sempre pelo ceticismo encerrado nas reflexões de Riobaldo, que o faz duvidar de tudo, sem certeza de nada: “O Hermógenes: mal sem razão... Para poder matar o Hermógenes era que eu tinha conhecido Diadorim, e gostado dele, e seguido essas malaventuranças, por toda a parte?” (ibid., p. 478). Ou ainda: 

Revés – que, por resgate da morte de Joca Ramiro, a terrível que fosse, agora se ia gastar o tempo inteiro em guerras e guerras, morrendo se matando, aos cinco, aos seis, aos dez, os homens todos mais valentes do sertão? Uma poeira dessa dúvida empoou minha ideia – como a areia que a mais fininha há: que é a que o rio Urucuia rola dentro de suas largas águas, quando as chuvaradas do inverno. (p. 317)  

Eunice Piazza Gai, em seu estudo sobre o ceticismo em Montaigne, Cervantes e Machado de Assis, chama a atenção para o fato de que, antes de constituir um sistema filosófico fechado, o ceticismo seria antes uma “concepção do mundo alternativa, jamais dominante” (GAI, 1997, p. 22), que oferece um método de abordagem de compreensão do mundo, baseado na “suspensão cética” do juízo. A respeito da utilização do ceticismo na literatura, a autora destaca os temas que fariam parte da “cosmovisão cética”, presentes nos autores analisados por ela: a loucura, o riso, a morte, o cotidiano. Para Eunice, “os princípios filosóficos do ceticismo, tal como as obras literárias que os transformam em vivências particulares, conservam-se válidos e sempre atuais, pois dizem respeito a situações genéricas e imutáveis da condição humana” (op. cit., p. 23).

Assim como os existencialistas, como Sartre ou Camus, privilegiam o sentimento de absurdo da condição humana, conferindo a ela uma conotação de “loucura”, também para os céticos a loucura desempenharia papel de destaque, revelando o ridículo e a fragilidade do ser humano (GAI, 1997, p. 24). Invertendo o sentido da dicotomia platônica entre essência e aparência, que atribui o caráter de “verdade” à essência das coisas, enquanto a aparência delas seria “ilusória” e enganosa, para os céticos, a única “verdade” possível seria justamente a das aparências, pois “as coisas, os atos, os acontecimentos são o que nos parece que são, uma vez que os sentidos não são confiáveis e os objetos afetam-nos de diferentes maneiras” (op. cit., p. 26). Do extenso relato de Riobaldo, em que o absurdo se mescla à dúvida constante, nas andanças e lutas pelo sertão, destacamos o seguinte trecho, perpassado de ironia e de suspeita sobre os sentidos:

Mas, com surpresa de todos, Zé Bebelo também mudou de toada, para debicar, com um engraçado atrevimento: / — “Preso? Ah, preso... Estou, pois sei que estou. Mas, então, o que o senhor vê não é o que o senhor vê, compadre: é o que o senhor vai ver...” / — “Vejo um homem valente, preso...” – aí o que disse Joca Ramiro, disse com consideração. / — “Isso. Certo. Se estou preso... é outra coisa...” / — “O que mano velho?” / — “...É, é o mundo à revelia!...” – isso foi o fecho do que Zé Bebelo falou. E todos que ouviram deram risadas. (ROSA, 1986, p. 222) 

Nesse “mundo à revelia”, o espetáculo da morte de Diadorim, ao mesmo tempo “objeto de desejo” e de repulsa de Riobaldo – numa eterna oscilação entre a atração do instinto e a repulsão da aparência7 –, também se revela impregnado de amarga ironia, enquanto a única certeza, no final do relato, seria a da “travessia” humana: “Nonada. O diabo não há! É o que digo, se for... Existe é homem humano. Travessia.” (ROSA, 1986, p. 538)

A reflexão sobre a condição humana, encerrada na obra de Guimarães Rosa, seria feita, assim, de forma singular, associando um modo de ver essencialmente cético ao sentimento de absurdo, aliados ainda a uma linguagem de caráter experimentalista, que surge emoldurada pelo cenário sertanejo. De tal conjunção resultaria uma prosa específica: a prosa roseana, que, conforme observado por seus diversos estudiosos, possui um caráter ao mesmo tempo individual e universal.

Como espécie de Zeitgeist dominante na primeira metade do século XX, o “sentimento de absurdo”, reinante na Europa do pós-guerra e presente no âmbito da literatura e da filosofia europeias, acaba por ser absorvido pela literatura no Brasil, tornando patente, deste modo, o diálogo da cultura brasileira com a cultura europeia.

Na obra de Nelson Rodrigues, aquele sentimento se apresentaria associado à “cultura da psicanálise” (PEREIRA, 1999, p. 143), seja como “fonte de referência modernizante”, ou como crítica ao discurso psicanalítico. Enquanto, na obra de Lúcio Cardoso, ele se apresentaria indissociado da melancolia, do modo enfatizado por Ruth Silviano Brandão, em Guimarães Rosa, estaria associado, fundamentalmente, à “cosmovisão cética”. Ao passo que a “saturação psicanalítica”, no universo rodrigueano, serviria para “exagerar”, caricaturalmente, o absurdo da existência de um eu complexo e “complexado” freudianamente, de outro lado, o ceticismo adotado por Guimarães Rosa funcionaria como modo de suspender a perplexidade diante dos absurdos “gerais planos de areia, cheios de nada” (ROSA, 1986, p. 461), nos quais “a vida da gente vai em erros, como um relato sem pés nem cabeça” (p. 212).

 

CAPÍTULO 2 

UM NOVO REFERENCIAL: A INFORMAÇÃO E O “HIBRIDISMO” DA LITERATURA 


Em um texto de 1919, no qual analisa as condições da vida universitária na Alemanha e nos Estados Unidos, Max Weber chega à conclusão de que “o mundo foi desencantado” (WEBER, 1979, p. 165). Tal processo teria se dado, segundo ele, com a progressiva racionalização da sociedade ocidental, que colocou à disposição de todos as explicações necessárias sobre o funcionamento da vida cotidiana – embora não houvesse, para o homem comum, um pleno domínio sobre o conhecimento, esfera reservada apenas aos “especialistas”. Para Weber, a racionalização da época moderna, que substituiu as explicações mágicas e divinas do passado, expulsando os anjos e os demônios do mundo, juntamente com a perspectiva medieval do “maravilhoso”, gera o esvaziamento da vida civilizada. Assim, a vida individual do homem civilizado, imerso numa sociedade pautada pela noção de “progresso infinito”, jamais se completa, ao contrário do que ocorria nos “ciclos orgânicos” do passado. Deste ponto de vista, a vida civilizada do mundo moderno e racional é sempre provisória, e a morte, “uma ocorrência sem significado” (op. cit., p. 166).

Com o desenrolar da guerra, juntamente às transformações que se vinham operando nos campos da Física e da Biologia, bem como na cultura ocidental, conforme já visto no Capítulo 1 deste trabalho, a racionalização e a intelectualização – “marcas por excelência da modernidade”, na visão weberiana – tornar-se-iam definitivamente esvaziadas de sentido, substituídas por uma nova marca: a marca do absurdo de uma existência que perdeu o significado, junto com as certezas lógicas e racionais, e cujos limites extremos seriam a loucura e a morte, voluntária ou não. Para Martin Esslin, seria “ingênuo e simplista supor que qualquer época apresente um aspecto homogêneo. Sendo a nossa uma época de transição, é lógico que apresente um quadro estonteantemente estratificado” (ESSLIN, 1968, p. 19). No entanto, o teórico reconhece que o Teatro do Absurdo estudado por ele, trabalhando com a dimensão “absurda e sem sentido” da existência humana, “pode ser identificado como um reflexo do que parece ser a atitude que mais autenticamente represente nosso próprio tempo” (op. cit., p. 19). Ou seja, o “sentimento do absurdo”, com sua noção de gratuidade e de “absurdidade” da vida, seria, indiscutivelmente, de acordo com o ponto de vista de Esslin, a marca dominante dos novos tempos.

Neste sentido, é interessante notar como, a partir de 1920, com a publicação de Além do princípio de prazer, a obra de Freud sofreu uma “reviravolta”. Os estudos psicanalíticos desenvolvidos por ele, até então voltados para as questões do complexo de Édipo, dos sonhos como elementos de interpretação do inconsciente e do papel da sexualidade, foram acrescidos do conceito de “pulsão de morte”. Discorrendo sobre a problemática da compulsão à repetição e sua relação com os instintos – considerados aí não como um impulso de origem meramente orgânica, mas “historicamente determinados” (FREUD, 1998, p. 47) –, Freud busca determinar “o objetivo final de todo esforço orgânico”. Para ele, seria contraditório “à natureza conservadora dos instintos que o objetivo da vida fosse um estado de coisas que jamais houvesse sido atingido” (op. cit., p. 49).  Assim, deste ponto de vista, todo o esforço do organismo vivo se daria no sentido de retornar a uma posição inicial, ao qual ele teria sido obrigado a abandonar.

Para Freud, os instintos de conservação nada mais seriam do que “tortuosos caminhos para a morte” (p. 50), uma vez que “se tomarmos como verdade que não conhece exceção o fato de tudo o que vive morrer por razões internas, tornar-se mais uma vez inorgânico, seremos então compelidos a dizer que ‘o objetivo de toda vida é a morte’, e, voltando o olhar para trás, que ‘as coisas inanimadas existiram antes das vivas’” (p. 49). Deste modo, embora pareça contraditório que os instintos de autoconservação busquem ocasionar a morte, Freud irá estabelecer, nesse texto, que não é outro o objetivo da vida que não o retorno à origem inorgânica, ou seja, à morte. Porém, a morte objetivada pelo organismo não é aquela que poderia ser alcançada imediatamente, como num acidente, por exemplo, mas a “existência inorgânica imanente ao próprio organismo” (p. 50), conseguida pela “morte natural”. Em oposição ao propósito dos demais instintos, cuja função é conduzir o organismo vivo à morte, os instintos sexuais seriam “os verdadeiros instintos de vida” (p. 52).

A respeito de Além do princípio de prazer, baseado em “especulações metapsicológicas”, como afirma o seu autor (FREUD, 1998, p. 38), Laplanche faz o seguinte comentário: 

Além do princípio de prazer que, em 1920, um ano depois de Uma criança é espancada, introduz a pulsão de morte, continua sendo o texto mais fascinante e mais desconcertante de toda a obra freudiana. (...) Termos inteiramente novos aparecem: Eros, pulsão de morte, compulsão à repetição... Ideias antigas, aparentemente esquecidas são retomadas e formuladas. (LAPLANCHE, 1985, p. 109) 

Para Laplanche, esse texto de Freud exerceria ainda uma completa transgressão ao discurso lógico-racional, fugindo à imposição dos critérios metodológicos:  

Profundamente desnorteante, esse discurso não se subordina senão esporádica e superficialmente a imperativos lógicos: trata-se de um pensamento livre – no sentido de associações livres –, pensamento “para ver” que implica em retornos, arrependimentos e desmentidos. Tal contrapartida de liberdade do procedimento, igualmente sedutora, pode decepcionar aquele que não se identifica com ela: as lacunas do raciocínio são aí armadilhas, os deslizamentos dos conceitos vêm confundir as referências terminológicas, as mais profundas discussões são de repente cortadas arbitrariamente... Se buscamos criticá-lo, temos a impressão de que todas as questões nele estão mal colocadas, que todas precisam ser reelaboradas. (op. cit., p. 109, não grifado no original). 

Por outro lado, se a discussão sobre o conceito de pulsão de morte revelaria, na obra de Freud, uma libertação definitiva dos postulados das ciências lógicas e racionais, Laplanche vê, no conceito de “pulsão de vida”, elaborado como espécie de contraponto à pulsão de morte, “fim último” da vida, uma “tendência que recolhe, apesar de certas denegações de Freud, uma parte da esperança oriunda da ideologia evolucionista ou progressista: Eros reúne, Eros tende a formar unidades cada vez mais ricas e mais complexas, primeiro no plano biológico, depois no plano psicológico e social” (ibid., p. 110). Em todo caso, a reflexão sobre a inevitabilidade da dissolução da existência, sob a forma de “pulsão de morte” – vista essencialmente como uma “compulsão a demolir a vida, conceito que parece bem pouco dialético”, nas palavras de Laplanche (1985, p. 125 e 126) –, foi assim incorporada também à psicanálise freudiana, numa conjuntura em que a lembrança dos horrores da Primeira Guerra Mundial – onde vida e morte passaram a ser gratuitas e sem sentido – estavam vívidas no coração da Europa.

A preocupação com a morte, sobretudo a “morte absurda” dos campos de batalha, parece mesmo ocupar lugar de destaque no pensamento ocidental da primeira metade do século XX. Num pequeno texto de 1933, Experiência e pobreza, Walter Benjamin chama a atenção para o efeito da Primeira Guerra Mundial sobre os combatentes, “que tinham voltado silenciosos do campo de batalha. Mais pobres em experiências comunicáveis, e não mais ricos” (BENJAMIN, 1986, p. 115). Também em O narrador, escrito em 1936, a preocupação com a morte se acha presente. Nesse texto, além da célebre distinção entre a “morte medieval” e a “morte moderna” ou burguesa, Benjamin considera a referência à morte, nas narrativas, como “a sanção de tudo que o narrador pode contar” (op. cit., p. 208), conferindo-lhe “autoridade”. Assim, para o teórico da Escola de Frankfurt, a narrativa de Johann Peter Hebel seria “exemplar”, uma vez que “a morte reaparece nela tão regularmente como o esqueleto, com sua foice, nos cortejos que desfilam ao meio-dia nos relógios das catedrais” (ibid., p. 209).

Por sua vez, discutindo a dicotomia carne/espírito a partir da ótica da vivência de um mundo em luta e enlutado, e justificando as razões pelas quais considera a carne “a única certeza”, já que “a época presta-se a isso”, Albert Camus observa: “No fim de tudo, e apesar de tudo, está a morte. Sabemo-lo. Sabemos também que ela põe termo a tudo. Eis porque esses cemitérios que cobrem a Europa, e obcecam alguns de nós, são medonhos. Só embelezamos aquilo a que temos amor e a morte repugna-nos e cansa-nos” (CAMUS, s/d, p. 111).

Deixando, pois, de lado o paradigma da racionalidade – o qual teve lugar sobretudo no positivismo das ciências oitocentistas, que buscavam “explicações” para tudo, e que permitiu gerar o “romance de tese” naturalista – o mundo ocidental do pós-guerra, reconstruído e reconstituído, tal qual fênix renascida, irá erigir um novo centro de referência. Este novo referencial não mais se baseará puramente na racionalidade, mas na divulgação da informação, que tem em sua base a vasta e poderosa engenharia dos meios de comunicação de massa.

Segundo Jesús Martín-Barbero, a cultura da informação de massa tem início nos Estados Unidos, a partir da década de 1920. Para ele, a notícia, transformada em mercadoria, representa, ao mesmo tempo, um estilo de vida baseado sobretudo no consumo, e “erigi-se como paradigma de uma cultura que aparecia como sinônimo de progresso e modernidade” (MARTÍN-BARBERO, 1987, p. 204). Embora centralize sua análise na questão do consumo, visto por ele como um “elemento de cultura” graças à ação da publicidade, calcada por sua vez na “persuasão”, Martín-Barbero reconhece a década de 1950 como uma época de estabelecimento definitivo do novo paradigma:Mesmo tendo eclodido poucos anos depois a crise de 1929 e mais tarde a Segunda Guerra Mundial, tornando-se o consumo uma prática generalizada só a partir dos anos 1950, ele seria desde então um ingrediente-chave do estilo de vida e da cultura de massa norte-americanos” (op. cit., p. 205).

Passando a refinar a divulgação dos fatos desde o momento mesmo de sua ocorrência e transformando-os em “imagem” e em “espetáculo”, a informação acaba por se tornar uma necessidade, seguindo, deste modo, a lógica da mercadoria. Tal conjuntura teria permitido a Guy Debord, em 1967, forjar o seu conceito de “sociedade do espetáculo”: “O espetáculo não pode ser compreendido como o abuso de um mundo da visão, o produto das técnicas de difusão maciça das imagens. Ele é uma Weltanschauung que se tornou efetiva. É uma visão de mundo que se objetivou” (DEBORD, 1997, p. 14). Sem abandonar contudo o paradigma da racionalidade, o qual tornara-se “pressuposto” –  pois, como observa Guy Debord, “a vitória do racional já está presente como exigência na cultura separada da sociedade espetacular” (op. cit., p. 120) –, a sociedade ocidental do pós-guerra, midiática e “absurda”, passaria a concentrar-se não na explicação e na interpretação dos fatos, mas sobremaneira na sua divulgação, ou seja, na sua crua apresentação.

Este fenômeno, no qual os meios de comunicação de massa passam a exercer papel preponderante na divulgação da informação – feita sobretudo a partir da ótica da “exibição” – acabaria por ser absorvido também pela literatura. Especialmente no Brasil, aliado à conjuntura política e econômica da ditatura militar – em que ocorre a “expansão e consolidação de uma poderosa indústria cultural em bases não só capitalistas (o que já vinha ocorrendo antes de 1964), mas cada vez mais monopolistas e de Estado” (COUTINHO, 2000, p. 70) – durante toda a década de 1970, ele seria responsável pelo florescimento do chamado “romance-reportagem”. Analisando a literatura brasileira daquele período, Terezinha Barbieri observa que a década de 1970, “engrossando uma vertente que vinha de trás, é predominantemente ocupada pela literatura de denúncia política e social, preenchendo espaços jornalísticos, já que a imprensa, então amordaçada pela censura, deixava vácuos de informação” (BARBIERI, 1996, p. 85).

Desse contexto, fariam parte, ainda segundo Terezinha Barbieri, livros como Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca e O que é isso, companheiro?, de Fernando Gabeira, além de Zero, de Ignácio Loyola de Brandão. Inegavelmente, porém, a obra de Rubem Fonseca seria o grande destaque do período, talvez devido à polêmica em torno da censura que lhe foi imposta, em 1976.

 

2.1 - Os “contos-reportagem” de Rubem Fonseca e a subversão dos valores sociais

A crítica, por maior que seja a sua malignidade, produz sempre um efeito útil que é de aguçar a curiosidade. O mais rigoroso censor, malgrado seu, presta homenagem ao autor, e o recomenda. (José de Alencar, in posfácio a Senhora)

 

Em um estudo sobre o teatro de Nelson Rodrigues, no qual analisa as condições que permitiram o desenvolvimento e a modernização do teatro brasileiro, Ronaldo Lima Lins chama a atenção para o “provincianismo” das cidades brasileiras, que somente teria sido superado, de acordo com ele, após a Segunda Guerra Mundial, com a vinda para o Brasil de dramaturgos estrangeiros refugiados: 

Expulsos do Velho Mundo pelo conflito internacional que subvertia todas as relações humanas e de trabalho, em proporções nunca imaginadas, os homens de teatro que se refugiaram no Brasil encontraram, além de uma plateia em expansão, um material bruto de boa qualidade a ser moldado e trabalhado. (LINS, 1979, p. 56) 

Contudo, independentemente da vinda de tais dramaturgos, o contexto brasileiro das décadas de 1940 e 1950 encontrava-se, indubitavelmente, em plena agitação política, econômica e social. Sem conseguir uma conciliação entre as exigências “modernizantes” dos governos Vargas e JK, baseadas na acumulação perversa do capital, em que o Estado tinha papel preponderante – o chamado “capitalismo monopolista de Estado”, característico da América Latina – e a demanda popular por melhoria salarial e reforma agrária, o país passaria rapidamente de uma “transformação” para uma “crise” incontrolável, culminando na tomada do poder pelos militares em 1964.

Desde fins da década de 1950, a cultura brasileira, embora centrada numa discussão de caráter intelectualizado, vinha se voltando para as questões estruturais, ou seja, para os problemas gerados pelo modelo econômico adotado pelos chamados “países periféricos”, ou de “capitalismo dependente”, incluindo-se aí o Brasil. Sobretudo no governo Kubitschek, de 1956 a 1961, o Brasil teve grande desenvolvimento econômico, baseado na expansão da indústria, mas, conforme observa Thomas Skidmore, ignorando áreas como agricultura e educação, relegadas a um segundo plano no Programa de Metas: 

Kubitschek, assim como Vargas antes dele, nunca levantou o problema da terra de outra forma, senão a de sugerir medidas politicamente inócuas, tais como a expansão do crédito rural ou o aperfeiçoamento da distribuição de alimentos através das facilidades de construção de novos armazéns. Tendo sido bem treinado na escola política do PSD de Minas Gerais, Kubitschek estava pouco inclinado a influir no sistema de propriedade rural existente. (SKIDMORE, 1975, p. 210) 

A crítica aos problemas gerados por essa forma de “nacionalismo desenvolvimentista” (Skidmore), feita principalmente pelo Cinema Novo, colocara no centro da discussão os problemas da América Latina se impondo, mais tarde, como foco de resistência ao golpe militar de 1964. Na música, os festivais da MPB também se revestiam dessa perspectiva crítica, assim como a produção docente das universidades, notadamente nas Faculdades de Filosofia.

A segunda metade dos anos de 1960 e toda a década de 1970, no Brasil, se caracterizam por um contexto de ditadura militar que, com o acirramento da censura, restringe o debate das questões sociais e econômicas do país ao âmbito intelectual, dentro ou fora das Universidades. No teatro, surgem as peças de Chico Buarque e Paulo Pontes, enquanto as teses de doutorado, na academia, se tornam “forma insuspeitada de análise da sociedade” (BUARQUE e PONTES, 1978, p. xviii).

Assim, naquele período, a discussão sobre as questões estruturais mais importantes da sociedade brasileira incluindo o debate sobre a questão agrária assume um caráter demasiadamente acadêmico, fruto das condições impostas pela censura militar. A repressão às críticas de cunho social e econômico tem como consequência a deportação de políticos, artistas e intelectuais, e o estabelecimento do Ato Institucional nº 5 ou AI-5, como ficou mais conhecido. O lema “Brasil, ame-o ou deixe-o” é amplamente divulgado nos meios de comunicação de massa, a essa altura já bastante desenvolvidos, enquanto ocorrem desaparecimentos “inexplicáveis”, cujo caso mais famoso é o do deputado federal Rubens Paiva. Nesse contexto de conturbação social e política, derivado sem dúvida da “ordem” econômica vigente, surgem os contos de Rubem Fonseca. Tendo estreado em 1963, época de plena efervescência política, com o livro de contos Os Prisioneiros, o escritor lançará, em 1975, ano marcado pela ditadura militar, Feliz Ano Novo, rechaçado pela censura do regime militarista no ano seguinte.

A questão, suscitada por teóricos como Luiz Costa Lima, quanto aos escritos de Rubem Fonseca possuírem ou não status de “literatura” (LIMA, 1981) passa desta forma a ser vista sob nova perspectiva. Ou seja, não seriam, os textos de Rubem Fonseca, “desviados” de um padrão literário estabelecido,8 mas seria o próprio padrão da cultura brasileira, de modo geral, que estaria em mudança no Brasil, voltado para valores que se encontram na infra-estrutura social, econômica e política brasileira. Malcolm Silverman, citando o artigo A escada da glória, de Wilson Martins, publicado em O Estado de São Paulo de 19/03/1976, considera Rubem Fonseca um “renovador do conto brasileiro”, não em aspectos puramente de técnica literária, mas sobretudo por apresentar todo um universo específico, consistindo aí o seu caráter inovador na prosa brasileira (SILVERMAN, 1981).

Os contos de Rubem Fonseca surgem revestidos de uma violência e miséria que não são apenas sociais e econômicas, mas atingem o ser humano de forma tal, que sequer importa quem protagoniza essa violência: o bandido marginalizado de O Cobrador ou o alto executivo de Passeio Noturno I e Passeio Noturno II. A violência e a miséria retratadas/denunciadas nos “contos-reportagem” de Rubem Fonseca seriam, dessa forma, inerentes ao próprio ser humano, não importando o posicionamento individual nos valores hierárquicos de uma sociedade alicerçada, ela própria, sobre bases econômicas perversas. Tal visão se evidenciaria sobremaneira nos contos Onze de Maio e Anjos das Marquises, que retratam, adicionalmente, a forma como a velhice é vista e tratada por essa mesma sociedade imbuída de conceitos “desumanos” violentos e miseráveis , pouco preocupada na valorização e reconhecimento da pessoa humana.

No conto Feliz Ano Novo, os valores da sociedade burguesa aparecem subvertidos. A rígida hierarquia social se desmorona, ficando “em suspenso”, para em seguida surgir “de ponta-cabeça”. Enquanto o desmoronamento social é ridicularizado na imagem de uma das anfitriãs “Toda penteada, aquele cabelão armado, pintado de louro, de roupa nova, rosto encarquilhado” (FONSECA, 1994, p. 369) , a suspensão dos valores sociais é representada, no conto, pelos tiros dados nas vítimas (os ricos), com o objetivo de mantê-las em suspenso na parede. A reversão dos valores sociais, por sua vez, torna-se patente na seguinte passagem: “arrumei a colcha de cetim da cama com cuidado, ela ficou lisinha, brilhando. Tirei as calças e caguei em cima da colcha. Foi um alívio, muito legal. Depois limpei o cu na colcha, botei as calças e desci.” (op. cit., p. 369). Em seguida, a comemoração de um “feliz ano novo”, que, nesse conto, era inicialmente privilégio exclusivo dos ricos, subitamente torna-se parte da realidade dos marginais, numa caricatura dos valores burgueses: “Subimos. Coloquei as garrafas e as comidas em cima de uma toalha no chão. Zequinha quis beber e eu não deixei. Vamos esperar o Pereba. Quando o Pereba chegou, eu enchi os copos e disse, que o próximo ano seja melhor. Feliz ano novo.” (ibid., p. 371).

Os valores sociais caricaturizados e subvertidos, no conto Feliz Ano Novo, apresentam a sociedade brasileira a partir de um ângulo de visão invertido, que expõe a visão dos marginalizados, dos desprivilegiados. Assim, o que Costa Lima descreve como a “ampliação de um clichê” (LIMA, 1981, p. 150),9 é visto aqui como caricatura dos valores sociais subvertidos, numa perspectiva essencialmente crítica de uma realidade social “feroz”. Essa ótica de subversão da hierarquia social estabelecida aparece ainda nitidamente nos contos Intestino Grosso e O Cobrador. Neste último, o aspecto feroz do realismo é exposto, como observa Júlia Polinésio, através da “fala magistral em primeira pessoa” (POLINÉSIO, p. 116) do bandido e/ou marginalizado. No entanto, não é somente este “realismo feroz” que é mostrado. Idêntica subversão dos valores sociais, encontrada em Feliz Ano Novo, também se evidencia no conto O Cobrador, simbolizada no próprio nome da personagem Ana. Deste modo, Ana a palindrômica, no conceito “erudito” do narrador subverte, ela própria, os valores da sua classe social, aliando-se ao Cobrador e à sua visão de mundo.

No conto Intestino Grosso, por sua vez, a ótica subvertida da realidade social se dá por meio de uma “paródia de entrevista”, em que o entrevistado é um escritor de sucesso, considerado pornográfico, e o entrevistador é um jornalista. A situação do conto, além de ironizar alguns aspectos sobre o jornalismo como por exemplo o fato de o entrevistador não ter lido o livro do entrevistado, objeto e motivo da entrevista , serve de pretexto para que o entrevistado revele o seu ponto de vista, colocando em xeque valores sociais até então inquestionáveis. A resposta do escritor, no conto, à pergunta sobre se ele é pornográfico se revela subversiva, na medida em que enfoca o conceito de pornografia a partir de um ponto de vista bastante diferente do estabelecido socialmente, tornando-se necessariamente crítico: “Pornográfico? Sou, os meus livros estão cheios de miseráveis sem dentes” (FONSECA, 1994, p. 461). Ou seja, os conceitos do escritor, personagem da narrativa, parecem não coincidir com os conceitos estabelecidos de uma sociedade vista por ele como hipócrita e pervertida, e cujo retrato mais fiel pode ser depreendido, para ele, da “inocente” história de fadas João e Maria, sintomaticamente conhecida “por quase todas as principais línguas do universo” (p. 463).

A perspectiva da realidade social, no conto Intestino Grosso, se transforma, nessa ordem assim subvertida, originando um ângulo de visão que se dá de baixo para cima. O próprio título do conto indica uma subversão em direção ao que Mikhail Bakhtin (1987) denominou “baixo material”. Segundo o teórico russo, à hierarquia dos valores da sociedade medieval corresponderia uma hierarquia do próprio corpo humano. Desta forma, a região corpórea se dividiria, na perspectiva dos valores da Idade Média, segundo Bakhtin, em “baixa” e “superior”, sendo a primeira referente à região do sexo, da comida e dos dejetos físicos, em oposição a uma região considerada “superior” e direcionada à elevação moral e religiosa, valores sociais de prestígio. Assim, ao retratar, por meio de uma linguagem “chula”, recheada de palavrões, aspectos ligados a este “baixo material” corpóreo e social, os textos de Rubem Fonseca oferecem uma nova perspectivização dos valores hierarquizados social e culturalmente, colocando-os definitivamente em questionamento.

 

2.2 – A palavra-imagem e o “teatro da dissolução” em Hotel Atlântico, de João Gilberto Noll 

 

A partir de 1980, ano da publicação do livro de contos O cego e a bailarina, de João Gilberto Noll, a literatura brasileira deixaria de lado a função de “reportagem”, bem como o paradigma de “literatura de denúncia” da década anterior, embora “não se possa simplesmente dizer que a tentação do documentário político tenha abandonado de vez os ficcionistas brasileiros nos anos 80 e 90” (BARBIERI, 1996, p. 94). Persistiria, nessa época, de acordo com Terezinha Barbieri, um “diálogo com a história” em romances como Boca do inferno, de Ana Miranda, A casca da serpente, de José J. Veiga (ambos de 1989) e Agosto, de Rubem Fonseca, publicado em 1990, cujo ponto em comum seria a “ficcionalização” de figuras da história do Brasil, como Gregório de Matos, Antônio Conselheiro e Getulio Vargas, respectivamente.

O romance Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, publicado em 1984, traz, por sua vez, um diálogo com aquilo que Antonia Cristina de Alencar Pires, analisando-o à luz do conceito benjaminiano de “história a contrapêlo” e do conceito de Derrida de “desconstrução”, denomina “a Outra história”. Ou seja, ao discutir aspectos da identidade e da memória coletivas brasileiras, e questionar os conceitos de Nação, Estado, Língua, Tradição, o romance de João Ubaldo acabaria por configurar, segundo a autora, uma “releitura” da história oficial do Brasil, desde sua colonização (PIRES, 2000), revelando uma “Outra” história, que o ideário romântico no Brasil se esforçou por “contornar”.

No entanto, além desses diálogos com a história e com a “contra-história” brasileiras, a literatura das duas últimas décadas do século XX no Brasil passaria a adotar, em seu próprio interior, como espécie de um “novo paradigma”, o diálogo com a cultura de massas, notadamente com os produtos da indústria cultural, especialmente os meios de comunicação de massa, gerando um “intercâmbio semiótico” entre os campos da literatura e da cultura de massa.

Surgida no Brasil no contexto da chamada “década perdida”, a prosa narrativa de João Gilberto Noll não é de modo algum talhada num “corte clássico”. Seca e incisiva, a prosa de Noll realiza “cortes” não apenas “cinematográficos”, mas também de caráter “cirúrgico”. Ou seja, a prosa narrativa nolliana não seria mero resultado de um bisturi afiado, à semelhança da “navalha de Occam”, mas ela própria faria as vezes de navalha, cortando e recortando figuras – os personagens – que são colocadas “em cena” diante de um leitor que também torna-se espectador. Esse ensaio entre figura e cena, no discurso ficcional de Noll, longe de reforçar a disputa, destacada por diversos autores, entre a imagem e a palavra no mundo atual, toma-os como elementos básicos de sua construção. Na narrativa de Noll, palavra e imagem possuem, pois, uma relação de complementaridade, surgindo como o resultado de um entrelaçamento de dois campos distintos, compondo uma terceira forma, que não é palavra ou imagem, mas palavra e imagem: “palavra-imagem”, talvez.

A encenação pela palavra, em Hotel Atlântico, não segue porém um trajeto retilíneo, um roteiro previamente traçado, enveredando antes por meandros obscuros que se ocultam no interior de uma linguagem aparentemente simples e direta, e desprovida de quaisquer ornamentos. Em constante movimento, a narrativa de Noll não possui um fio condutor, seguindo antes a “lógica da dispersão” –  lógica essa inerente ao próprio discurso ficcional, e oposta à “lógica da unidade” de outros tipos de discurso, conforme observa Luiz Costa Lima, em A questão da narrativa (LIMA, 1991). Em Hotel Atlântico, a palavra torna-se o meio por excelência da encenação de uma transformação irreversível e profundamente inquietante: palavra que “encarna” a imagem, como um ator encarnaria o seu personagem, ou imagem encarnada pela palavra: “— Amor, me chame de Amor, Verbo Encarnado.” (NOLL, 1989, p. 10).

A narrativa de Hotel Atlântico, abrindo-se em medias res, apresenta o seu protagonista-narrador já “no meio do caminho” de uma viagem cujo início não sabemos, cujo rumo não podemos prever. Utilizando um intercâmbio semiológico também com o teatro presente sob a forma de diálogo com a linguagem da telenovela (um “híbrido” de cinema e teatro), que “rendeu [ao narrador] algumas fotos em revista de TV” (NOLL, 1989, p. 68), além do diálogo com o cinema e com o teatro [“Trabalhei em alguns filmes e bastante em teatro” (op. cit., p. 34)] – o narrador, um “ator desempregado”, “mal chegado aos 40”,  inicia o seu relato, de forma simples, dizendo: “Subi as escadas de um pequeno hotel na Nossa Senhora de Copacabana, quase esquina de Miguel Lemos”. A partir daí, se descortina um palco, à maneira becketteana, em que tem lugar a encenação de uma viagem que, assim como a linguagem despida de ornatos, é desprovida de qualquer sentido: 

Subi num degrau da escada-rolante. A escada que descia vinha ainda mais apinhada de gente. Entre a escada que subia e a que descia, havia uma larga escada de concreto. Por ela os apressados subiam ou desciam pulando degraus. / Naquelas vias por onde se subia ou descia pareciam todos muito imersos naquilo que estavam fazendo. Ter percebido assim me relaxou. Eu também conseguiria: viajar, tomar um ônibus, chegar em algum lugar. (NOLL, 1989, p. 15) 

O caráter de absurdo ressalta-se nesse trecho, a despeito de todos parecerem “muito imersos naquilo que estavam fazendo”, ou talvez por causa disto mesmo. A viagem das pessoas indo e vindo, subindo e descendo escadas na rodoviária carioca se equivale à própria viagem do narrador: assim como nada sabemos do início e do destino desta, ele também percebe o mesmo em relação às outras pessoas: “Ter percebido assim me relaxou. Eu também conseguiria: viajar, tomar um ônibus, chegar em algum lugar”. Da mesma forma que ele, as pessoas na rodoviária também eram viajantes em trânsito, “no meio do caminho”, sem origem e destino conhecidos, indo a “algum lugar” que ninguém poderia, de antemão, precisar.

A jornada da existência humana também se reveste de um caráter de medias res, na medida em que não possui uma origem de fato conhecida, um destino previamente traçado, se dando antes sob a forma de errância, um eterno “trânsito”, um interminável “meio do caminho”, sem qualquer objetivo definido, caracterizando deste modo – sobretudo para a perspectiva existencialista todo o absurdo do simples viver. Tal tema faria parte das reflexões de Camus, em sua análise do mito de Sísifo, para ele, o “herói absurdo”, na tarefa infindável de rolar a pedra às alturas para vê-la cair e novamente ir buscá-la: 

É durante esse regresso, esta pausa, que Sísifo me interessa. (...) Vejo esse homem descer outra vez, com um andar pesado mas igual, para o tormento cujo fim nunca conhecerá. Essa hora que é como uma respiração e que regressa com tanta certeza como a sua desgraça, essa hora é a da consciência. (...) Se esse mito é trágico, é porque o seu herói é consciente. Onde estaria, com efeito, a sua tortura, se a cada passo a esperança de conseguir o ajudasse? O operário de hoje trabalha todos os dias da sua vida nas mesmas tarefas, e esse destino não é menos absurdo. Mas só é trágico nos raros momentos em que ele se torna consciente. (CAMUS, s/d, p. 149) 

O recurso ao medias res, na abertura de Hotel Atlântico, embora contrapondo-se ao ato linguístico natural – que depende sempre de uma fala introdutória, dirigida ao interlocutor –, aproxima-se, paradoxalmente, da própria forma da existência humana: vivemos em medias res. A história da humanidade é uma história sem começo nem fim conhecidos, recheada de questões que, desde sempre, afligem filósofos, historiadores, biólogos e arqueólogos: como tudo começou? como irá acabar?, questões essas colocadas em suspenso mesmo pelas religiões, que não tratam propriamente de as responder, mas, antes, buscam “preservar o mistério” que as envolve.10 Em Hotel Atlântico, a religião, longe de propor “explicações” para os acontecimentos narrados, surge antes como uma espécie de ícone, formada de fios superpostos à narrativa. À feição de bordados multicores sobre o tecido da narração, os ícones ou figuras religiosos ali presentes não teriam necessariamente uma função explicativa da/na história, mas estão ali, visíveis, pairando sobre a textura narrativa, distantes e alheios à sorte dos personagens, como ícones que nada explicam nem devam ser explicados.11 Narrando a sua estadia em Florianópolis, o protagonista observa: 

Almocei num restaurante que ficava numa praça bem ampla. Ouvi o garçom arranhar o inglês com um casal de turistas alemães. Ele contava que a igreja que se via numa das margens da praça era a catedral da cidade. / Eu comia peixe e bebia um vinho branco. Nos intervalos, admirava o casal de alemães, ou verificava mais uma vez que a catedral tinha uma imensa escadaria. Quando voltava a olhar o prato, o cálice de vinho, eu me sentia a viver rudimentos de ilusões. (NOLL, 1989, p. 30 – não grifado no original) 

Nesta passagem, destaca-se a presença “mais uma vez” das escadas, dando acesso a uma catedral que assume um caráter bastante iconográfico, realçado ainda pelos “rudimentos de ilusões” provocados no personagem-narrador pela visão – ou seja, pela imagem – do prato de peixe e do cálice de vinho, elementos tradicionalmente ligados à iconografia cristã. A imagem de Cristo irá aparecer claramente mais adiante, quando o protagonista se encontra num bordel: “Vi na porta do banheiro um calendário atrasado, de 1986, de uma tal Transportadora Fichter. Na parte superior do calendário havia a figura de Cristo. Cristo despojado de suas vestes, só com um pano em volta dos quadris. (...) As pupilas olhavam para o Alto” (op. cit., p. 43).

Note-se, na imagem do Cristo recortada pela palavra de Noll, o completo alheamento à cena, denotado pelas suas “pupilas voltadas para o Alto”, que o faz pairar acima da condição humana. Ou, para utilizar a dicotomia bakhtiniana de “alto” e “baixo” material, a dimensão extraterrena, superior e divina, se contrapõe, na narrativa, à dimensão “inferior” da existência humana: “Fechei a porta e comecei a tirar a batina. Em dois segundos me desfazia da imagem de padre. Eu era um homem nu diante do crucifixo na parede. Senti um calafrio” (ibid., p. 60).

A “dimensão inferior” ou o “baixo material” da narrativa seria representada ainda pela presença de animais, sempre ao rés do chão, dos quais se destacaria a figura do cavalo,12 símbolo da sexualidade, e cuja imagem torna-se recorrente, em toda a trajetória do narrador de Hotel Atlântico, quer seja como simples alusão ou como referência direta: 

Vendo-se despida ela imediatamente pôs-se de quatro sobre o imundo carpete verde. Eu me ajoelhei por trás. A missão: cobri-la fora do alcance dos seus olhos. Nenhum toque acima da cintura, nada que não fossem ancas anônimas se procurando, patéticas. / — Que tal – me perguntou –, não é boa a japonesa? — Boas crinas, respondi, sem saber o que eu queria dizer com isso. Boas crinas, Nélson repetiu, e enfiou a mão por dentro da calça. / Eu olhava as ancas do cavalo marchando, olhava o homem alourado todo franzido pelo sol, olhei para trás e vi a carga que ele levava, abóboras. / Um cachorro latia contra as patas de um cavalo que passava. Montado no cavalo ia um garoto de uns doze anos fantasiado de príncipe encantado – um manto azul descia-lhe dos ombros. Deve ser uma festa de escola, calculei. (NOLL, 1989, p. 8, 43, 50 e 61) 

De outro lado, o aspecto iconográfico ou meramente imagístico da religião se evidenciaria ainda pelo título de um dos filmes no qual o personagem-narrador havia trabalhado, “O homem que queria ser Deus”. Deste modo, considerando que o cinema é o campo imagístico por excelência, a referência a um filme que tem por tema a religião evidenciaria o sentido puramente imagístico desta adotado na narrativa.

A ironia, uma das principais marcas do período romântico da literatura, é substituída, em Hotel Atlântico, por uma sensação abissal, que caracterizaria toda a situação-limite aí vivida. Deste modo, não seria apenas “irônico” que o protagonista do romance seja “um homem nu diante do crucifixo na parede”, ou que ele tenha acordado dentro de uma capela, após ter vivido, diante de vitrais e imagens religiosas, uma experiência sexual fracassada. A ironia, neste caso, não seria suficiente para dar conta do sentimento de impotência e inutilidade da religião frente à experiência humana concreta. O que resta, é apenas abismo e inquietação.

Assim como a ironia surge como espécie de “marca zero” na morfologia da narrativa ficcional de Hotel Atlântico, a ausência de índices aí também é flagrante. Ou seja, o leitor não é “avisado”, por meio de indicadores narrativos, do que irá acontecer, mas, ao contrário, é surpreendido pela vertigem dos acontecimentos e pela completa imprevisibilidade deles. Esse mecanismo permitiria, enfim, a plena identificação da narrativa de Noll com o campo semiótico do cinema, cujas imagens, para Deleuze, são “puras”, sem profundidade, “lisas”, verdadeiras “imagem-tempo”: 

As situações já não se prolongam em ação ou reação, como exigia a imagem-movimento. São puras situações óticas e sonoras, nas quais a personagem não sabe como responder, espaços desativados nos quais ela deixa de sentir e de agir, para partir para a fuga, a perambulação, o vaivém, vagamente indiferente ao que lhe acontece, indecisa sobre o que é preciso fazer. Mas ela ganha em vidência o que perde em ação ou reação: ela , tanto que o problema do expectador torna-se o “que há para se ver na imagem?” e não mais “o que veremos na próxima imagem?”. (Deleuze, in Cinema II: a imagem-tempo, p. 323. Apud GUIMARÃES, 1996, p. 68) 

Analisando a questão da narrativa, Luiz Costa Lima considera o tempo como um traço fundamental do discurso narrativo, introduzido pela relação entre referência e interpretação. Para ele, o tempo pode ser tematizado no discurso “ora como representação do movimento – a narrativa propriamente dita – ora como apresentação de um estado ou instante – o poema” (LIMA, 1991, p. 145). Em Hotel Atlântico, o tempo físico, que acompanha a trajetória do personagem-narrador, sucedendo-se em frio, calor, tempestade e “belas manhãs”, não representaria porém apenas o movimento do fluir narrativo, através do qual haveria uma “seletividade” de “fatos pertinentes” e uma “ordenação de sentido”, conforme o ponto de vista de Costa Lima, mas possuiria também a função de marcação entre uma cena e outra, entre uma experiência e outra.

Além de funcionar como forma de marcação entre cenas, o tempo físico apresentado em Hotel Atlântico possuiria ainda a mesma condição de alheamento e superioridade em relação à condição humana, verificada quanto à presença das figuras religiosas na cena narrativa. Deste modo, o tempo físico da narrativa, ao desenrolar seu fluxo inexorável, estaria acima da mera condição humana, a qual lhe seria indiferente. Não aleatoriamente, o dia que fecha a narrativa é um “dia especial”, cheio de sol e claridade, uma bela manhã, ao contrário do dia “muito frio para Copacabana” do início da narrativa: “— O dia está especial para eu conhecer o mar, já viu lá fora? – [Sebastião] falou secando o rosto com uma toalha. — O primeiro dia do mundo, respondi.” (NOLL, 1989, p. 97). Esse “primeiro dia do mundo”, pleno de luz e cor, emoldurado ainda pelo canto do galo, marcará o contraste com o silêncio e a escuridão nos quais o personagem-narrador submerge, na última cena apresentada.

A viagem narrada em Hotel Atlântico e a dissolução corpórea do seu narrador – que tem início com uma “cárie inflamada de um dente” (op. cit., p. 11) – realizariam um intercâmbio com o modus operandi do teatro, na medida em que, como este, são “irrepetíveis” (“Soltei um suspiro que me fez bem ouvir. Mentalizei soltar outro mas não deu, era irrepetível”, ibid., p. 42), e, igualmente, “irreprodutíveis”. Albert Camus, analisando a comédia no “mundo absurdo”, considera que o conceito de “teatral” – palavra, segundo ele, “desconsiderada sem razão” – “cobre toda uma estética e toda uma moral” (CAMUS, s/d, p. 102). De acordo com o ponto de vista camuseano, “o ator reina no domínio do mortal. De todas as glórias, a sua é, como se sabe, a mais efêmera” (op. cit., p. 99). Escolhendo para seu personagem-narrador a “glória efêmera” da profissão de ator, em lugar de fazê-lo “multiplicar-se” em várias personas,13 Noll divide-o, esfacelando o seu corpo e fazendo-o passar pela experiência – para Camus, “irreparável” (ibid., p. 105) – da morte prematura. Em todo o caso, quer para Camus ou Noll, “o corpo é rei” (ibidem, p. 102), sendo ele o limite da experiência concreta do ator, quiçá de todo o ser humano.

Observe-se também que o fato de o narrador não possuir filhos – ou seja, não ter-se “reproduzido” – torna-se bastante revelador: ele é o protagonista de uma viagem definitivamente sem retorno, uma viagem sem a circularidade que permitiria a sua reprodutibilidade. Esse “teatro da dissolução”, de resto, inerente a todo ser vivo, pautado fundamentalmente pela “irrepetibilidade”, em última análise, contradiria o diálogo com a linguagem cinematográfica – por excelência, “reprodutível” e “repetível” – presente no texto. No entanto, a cena final da viagem “irrepetível” do narrador parece superar a contradição verificada entre a “irreprodutibilidade” do teatro da dissolução encenado e o diálogo semiótico com o cinema: como numa espécie de cinema-mudo, a palavra sem som (“mar”) salta dos lábios de Sebastião, nomeando a última imagem vista/retida pelo narrador – o “mar escuro do sul”. Enquanto o ator, personagem e narrador, num último suspiro “irrepetível”, solta “o ar devagarinho, devagarinho, até o fim” (NOLL, 1989, p. 98) – e, aqui, assinale-se a palavra FIM, fechando a narrativa –, a escuridão toma conta de tudo, à maneira do final de um filme, quando a tela é abandonada pelas imagens que lhe deram vida.

 

2.3 – As “caixas pretas” na literatura brasileira do final do século XX

Vinha eu da filosofia e, pelos caminhos da linguagem, me deparei com a aventura da comunicação. E da heideggeriana morada do ser fui parar com meus ossos na choça-favela dos homens, feita de pau-a-pique mas com transmissores de rádio e antenas de televisão. (Jesús Martin-Barbero, in Dos meios às mediações, p. 27) 

A literatura, sistema híbrido por excelência, apresentaria, na contemporaneidade, uma forma específica de hibridismo, decorrente, segundo Terezinha Barbieri (1996), de uma “exposição” dos escritores à ação da mídia, sob a forma de rádio, cinema, televisão, jornal, revista, cartazes e anúncios publicitários, e cujo resultado seria uma “palavra impura”. A autora vê, nesses cruzamentos semióticos, mais do que uma necessidade de adequação e atualização da literatura à nova tecnologia, sobretudo uma forma de “comércio” com sistemas semióticos concorrentes, o que provocaria não apenas o “hibridismo”, mas também a “pluralidade de caminhos” e a “anarquia formal” da literatura contemporânea. Para Terezinha Barbieiri, o “hibridismo” da literatura se daria, por excelência, no “momento de encontro da palavra com a imagem” (op. cit., p. 55), do qual a narrativa de João Gilberto Noll, em Hotel Atlântico, seria, nas palavras da autora, “exemplar”.

Integrando a discussão contemporânea da “palavra versus imagem” – da qual fazem parte autores como Ítalo Calvino, que, em seu texto Visibilidade, discute o desenvolvimento dos “usos da visão” e de seus mecanismos de controle nas sociedades contemporâneas, e Martin Jay, que identifica, numa sociedade essencialmente “ocularcêntrica”, “uma luta contínua pela afirmação entre o visível e a palavra como fonte da verdade”, conforme comenta Victor Hugo Adler Pereira (1999, p. 28 e 29) –, Vilém Flusser introduz o conceito de imagens “pós-históricas”, produzidas pelas “caixas pretas” e opostas à “textolatria” que caracterizou a filosofia ocidental desde suas origens gregas (FLUSSER, 1983). Deixando de lado as noções de “pós-moderno” e “pós-modernidade”, “conceitos suspeitos até pelos que os inventam e os usam” (BERNARDO, 1999, p. 161), Flusser propõe o conceito de “pós-história”, fundamentado não na produção de meras “imagens”, mas de “tecnoimagens”: 

As tecnoimagens são essencialmente diferentes das imagens tradicionais. As imagens tradicionais são produzidas por homens, as tecnoimagens por aparelhos. (...) Os aparelhos são caixas pretas que são programadas para devorarem sintomas de cenas, e para vomitarem tais sintomas em forma de imagens. Os aparelhos transcodam sintomas em imagens. (...) São caixas que devoram história e vomitam pós-história. (FLUSSER, 1983)

Para Gustavo Bernardo, “Flusser tenta compreender os dilemas do nosso tempo, as confusões entre o real e o imaginário, partindo da noção de ‘caixa preta’ (...), cujo funcionamento misterioso escapa parcial ou totalmente ao fotógrafo, paradigma de todos os profissionais da informação” (BERNARDO, 1999, p. 149). A “caixa preta”, seria, assim, algo excessivamente simples – bastando acionar um botão para fazê-la funcionar – ao mesmo tempo em que se mostra por demais inacessível: o “homem comum” (Weber) não conhece os complexos mecanismos que permitem a produção delas, e que permitem a elas, de outro lado, “traduzir o mundo tridimensional em imagem bidimensional” (op. cit., p. 149). Para Flusser, “a história toda, política, arte, ciência, técnica, vai destarte sendo incentivada pelo aparelho, a fim de ser transcodada no seu oposto: em programa televisionado. O aparelho se tornou a meta da história” (FLUSSER, 1983). No entanto, essa “pós-história” assim produzida não seria essencialmente, conforme ainda o ponto de vista de Flusser, baseada puramente nas tecnoimagens, mas sobretudo em programas (os computadores, por exemplo): “‘Programa’ é ‘prescrição’: a escrita é anterior a ele. É magia pós-histórica, e a história lhe serve de pretexto” (op. cit.).

Deste modo, não apenas os “programas de tevê”, baseados em tecnoimagens, realizariam a “pós-história” flusseriana: “programas” de rádio e “programas” de computadores também pertencem às “caixas pretas” – segundo Flusser, os aparelhos “misteriosos” e “mágicos” da contemporaneidade – que realizam a recepção da “mensagem espetacular” (Debord). Tais aparelhos, por sua vez, se baseiam essencialmente em informações – a transmissão da informação, no caso do rádio, e a codificação e decodificação da informação em programa, pelo computador.

Abrigando, pois, em seu interior o paradigma da informação – a partir do qual se estruturaria a pós-história de Flusser –, e mantendo um “intercâmbio semiológico” derivado da ação dos “profissionais da informação”, a literatura brasileira contemporânea traria, como novidade de fin-de-siècle, a presença das “caixas pretas” (Flusser), num perfeito e “natural” diálogo com elas. Visíveis na literatura brasileira sobretudo nas duas últimas décadas do século XX, as caixas pretas encontram-se já nos contos Passeio noturno I e Passeio noturno II, de Rubem Fonseca, incluídos no livro Feliz ano novo, de 1975. Esses contos narram a história do alto executivo, sádico em excesso, cujo divertimento é atropelar pessoas à noite com o seu carrão importado, enquanto a família assiste a novelas e filmes dublados na televisão.

O “romance autobiográfico” e memorialista de Salim Miguel, Nur na escuridão, publicado em 2000, narra a vida de uma família de imigrantes libaneses14 que veio para o Brasil em 1927. Nele, se pode perceber a força e o poder da informação sobre a Segunda Guerra Mundial já na década de 1940, alcançando o interior mais recôndito do Brasil – uma Biguaçu, “mítica e real”, perdida no litoral de Santa Catarina – por meio de uma “caixa preta” peculiar: o rádio. 

O pai se dirige até o rádio Phillips, um novo modelo, adquirido em Florianópolis, na loja do seu João Octávio, para pagar como pudesse, dando como entrada o anterior; liga-o, muda de uma estação para a outra. (...) É cedo. (...) / Agora sim, começa o primeiro noticiário, informações sobre o tempo, seguido de coisas miúdas sobre o Rio de Janeiro, menores ainda de outras regiões do país. Embora atento a tudo, o pai quer é saber das internacionais, e, claro, seus reflexos no país, na economia, na política, na vida das pessoas. É que a Alemanha acabou de invadir a Tchecoslováquia, os esquadrões de Hitler, irresistíveis, tudo levam sem luta, prometem continuar na arrancada, os integralistas vibram e comemoram, se vangloriam, dizem: é o primeiro passeio, muitos outros se seguirão, ninguém pode com o Hitler, um gênio, vamos dominar o mundo. (MIGUEL, 2000, p. 123-124)

Embora trate da “saga” de uma família de imigrantes libaneses nas primeiras décadas do século XX no Brasil, Nur na escuridão não possuiria um caráter “épico”. Ao contrário, seria antes fundado na fragmentação da memória do narrador, essencialmente subjetiva,15 cujo fio condutor se perde nos meandros da realidade/ficção, do passado e do presente, mesclando-os numa narrativa que dispensa a linearidade: 

Tudo se esvai. Nada mais é. Submerge. E por mais que lute, no decorrer dos anos vindouros, jamais terá certeza, saberá se foi outra vez um sonho, como tantos antes, sonho que durante bom tempo o acompanha, que vinha de muito tempo atrás, com renovada intensidade depois da operação, ou se a mulher, em carne, sangue, ossos, desejos, provocação, esteve mesmo em seu quarto de convalescente. (MIGUEL, 2000, p. 147) 

Para a antropologia literária de Wolfgang Iser, a ficção seria a forma humana de se lidar com as “ausências fundamentais”, representadas pelo desconhecimento da origem da vida e pela morte, dessacralizada e, pode-se acrescentar, tornada “absurda” na contemporaneidade. Do ponto de vista iseriano, a existência humana, fundamentalmente lacunar, procuraria “narrativizar-se”, por meio da ficção, buscando dessa forma preencher os vazios, ou “hiatos”, que lhe são inerentes (ISER, 1999). No entanto, considerando que a narrativa também seria construída de vazios e lacunas, como o demonstra o próprio Iser, a proposta da ficção encerraria em si mesma outro paradoxo, pois como pretender preencher as lacunas existenciais com algo – o texto ficcional – que se caracteriza justamente pelo seu caráter lacunar? Desse ponto de vista, a narrativa de Nur na escuridão, fundada essencialmente numa memória que “se esgarça, flutua, se decompõe, se compacta. Fios se atam/desatam. Fragmentos somem e reaparecem” (MIGUEL, 2000, p. 165), tornar-se-ia duplamente lacunar. Ou seja, a memória, buscando reconstituir – precariamente – o passado, ou aquilo que não mais existe, seria, ela mesma, lacunar, recobrindo uma narrativa que se pretende memorialística de “vazios que se presentificam” não apenas na ausência, mas sobretudo na perda: a perda de um tempo que já passou, da experiência do vivido que não mais volta. Perda, sobretudo, na morte, “domínio em que a memória é particularmente valorizada” (LE GOFF, 1992, p. 535).

Observe-se ainda que a narrativa de Nur na escuridão seria, também, duplamente memorialística, uma vez que não se baseia apenas na memória do narrador, mas inclui a autobiografia do pai do narrador, escrita em árabe e intitulada Minha vida, da qual são transcritos trechos, dando às vezes uma outra versão para o mesmo acontecimento narrado/relembrado: 

O pai se aposenta. (...) Enquanto a vista permite, se dedica às anotações no caderno. Vai enchendo páginas, que o ajudarão a recuperar um mundo perdido, painel de sua vida. Ali devem estar sonhos, esperanças, desalento, felicidade, desilusões. Como ponto central, a figura da mulher, Tamina, eixo de tudo. Um dia pára, o caderno some. Os filhos, intuem, não têm como saber ao certo o que estava escrito. O pai (...) apenas repete: quando eu morrer, procurem alguém que faça a tradução. (MIGUEL, 2000, p. 160)

Em Nur na escuridão, a reconstrução do passado pela memória não teria a preocupação de reproduzir fielmente o acontecido. Transitando entre os territórios do real e do imaginado, os fatos são vistos antes de um ângulo de valorização da subjetividade, no qual a prova fatual através de documentos – que poderia estabelecer/restabelecer definitivamente a “verdade” – é posta de lado, como recurso que, embora por vezes disponível, não se faz contudo essencial: 

Prefeito durante quantos anos? Quem saberia ao certo! Do início da década de 30 até meados de 40? Será? Seria? Não há como confirmar. Ou há? Até que há, claro que há. Basta recorrer à documentação, no arquivo morto da Prefeitura de Biguaçu. Deve estar lá, entre papéis antigos e empoeirados, a data de entrada e saída, as anotações devidas ao fato. Qual a importância em confirmar? O que acrescentaria ao que se pretende? No caso presente, é bom insistir, pouco. Para o que interessa, nada representa. Ele se eterniza no cargo. Sim, para nós – narrador e leitor – melhor se a prefeiturança do seu Fedoca fosse eterna... e foi. (MIGUEL, 2000, p. 229) 

Neste ponto, a narrativa de Nur na escuridão se contraporia drasticamente à narrativa de Barco a seco, romance de Rubens Figueiredo (2001). De caráter também memorialístico, e apresentando um intenso “intercâmbio” com o campo semiológico da pintura – vista pela personagem Ester como um “simulacro do mundo”, uma “imoralidade” que acoberta o lado sujo e triste da vida (op. cit., p. 44) – a narrativa de Barco a seco gira em torno da preocupação de Gaspar, o narrador, cuja profissão é perito em pintura, em “desconstruir” a imagem de Emilio Vega, o pintor de marinhas em torno do qual se monta toda uma “rentável” lenda. Para tanto, o ponto de vista do historiador, dado pela formação acadêmica de Gaspar, especializado que é em “história da arte”, terá, para o desenvolvimento da trama narrativa, peso fundamental:Eu não ia emendar minha hipótese de Vega por causa dele: para mim Inácio Cabrera não era uma prova viva, mas apenas um elemento da pesquisa, um dado que eu me dispunha a elaborar à minha maneira” (ibid., p. 90).

Parecendo adotar o pressuposto de Colingwood de que, para o historiador, a História não seria aquela que de fato aconteceu – impossível de se saber, realmente – mas aquela que “poderia” ter acontecido, Gaspar, ao longo da narrativa, e entre uma rememoração e outra da sua infância, constrói e desconstrói hipóteses para a formulação da identidade de Vega. Observe-se que, assim como o pintor, também ele não tem um passado conhecido, buscando, em suas recordações, uma identidade para si: Emudeço, nada explico. Permito que minha fama de homem reservado trabalhe a meu favor. Deixo que imaginem para mim um passado a seu gosto” (p. 102). No entanto, enquanto sua própria origem permanece encoberta o tempo todo, o mesmo não aconteceria com relação a Vega: o documento, “material de escolha do historiador” (LE GOFF, 1992, p. 535), assume, em Barco a seco, aspecto decisivo para o esclarecimento de uma importante questão – a idade do pintor –, tornando deste modo “possível” que Inácio Cabrera e Emilio Vega fossem a mesma pessoa: 

Não houve engano, concluí. Tampouco existiram dois Emilio Vega. Eram documentos autênticos, um deles com uma informação adulterada: a inscrição na Academia. Já pairava ameaçadora, em torno da minha cabeça, a noção de que, mais dia, menos dia, eu teria de divulgar aquilo. Vega era dez anos mais novo do que se supunha. (FIGUEIREDO, 2001, p. 123) 

Assim, enquanto no romance de Salim Miguel o documento é completamente deixado de lado, em favor de uma sobrevalorização da subjetividade, pouco preocupada em confirmar ou desmentir hipóteses, em Barco a seco ele assume importância fundamental. De outro lado, no romance de Rubens Figueiredo, a referência às “caixas pretas”, embora restrita, também se acha presente, ainda que de um ponto de vista essencialmente crítico: a personagem Ester, namorada de Gaspar, “trabalha na televisão”, selecionando figurinos para atores e apresentadores – ou seja, ajudando a construir a imagem que será exibida na tela.

Na “sociedade do espetáculo” de Guy Debord, “a imagem construída e escolhida por outra pessoa se tornou a principal ligação do indivíduo com o mundo que, antes, ele olhava por si mesmo, de cada lugar aonde pudesse ir” (DEBORD, 1997, p. 188). Deste ponto de vista, a personagem Ester cumpriria, na narrativa de Barco a seco, o papel dessa “outra pessoa” debordiana, interferindo no processo de intermediação entre o indivíduo e o mundo, realizado pela imagem. Observe-se ainda que a relação dessa personagem com a “caixa preta” seria idêntica à de Vega com a pintura, na medida em que, como este, que “trabalhava bem perto, dentro mesmo da paisagem que se pinta” (FIGUEIREDO, 2001, p. 27), ela trabalha dentro da “caixa preta”, ajudando a “construir” e a “escolher” as imagens que surgirão na tela. Quanto a Gaspar, o aparelho de tevê que ele possui, antigo e imprestável, revela um aparente desprezo pelos objetos de consumo da indústria cultural.16 Tal descaso, embora pareça negar o “devir-mundo da mercadoria espetacular” (Debord), acabaria porém por reafirmá-lo: “Ela [Ester] me chamou de bugre, de ogro, de pão-duro e incivilizado, um sujeito que nem sequer tem em casa um televisor que preste.” (op. cit., p. 41).

O rádio – visto por Martín-Barbero como um instrumento que faz a mediação entre a cultura popular e a “nacionalização das massas populares na América Latina”, notadamente o radioteatro argentino (MARTÍN-BARBERO, 1987, p. 226 e 247) – desempenha, em Nur na escuridão, o papel de tênue fio de ligação do interior do Brasil com o mundo, na década de 1940. Também possuiria, além disso, uma função socializante, ao agrupar em torno de si pessoas com os mais diversos interesses, “nos serões da casa-de-residência-bodega-loja-venda-armazém-bar, para os familiares, para os patrícios, para os fregueses contumazes que vinham em busca de um gênero alimentício, de um corte de fazenda, de uma pinga, de um papo, de notícias do Brasil e do mundo captadas da rádio Nacional do Rio de Janeiro através do rádio Phillips, mágica engenhoca há pouco adquirida para espanto das gentes” (MIGUEL, 2000, p. 106).

Inicialmente “espantando as gentes”, como o fez o cinema nas suas primeiras exibições de filmes, os meios de comunicação acabarão por se impor acima do seu próprio fim, tornando-se, eles mesmos, protagonistas de uma cena tão interminável quanto absurda. É ainda Nur na escuridão que traz, para o ano de 1995, a cena absurda e aparentemente infindável da Segunda Guerra Mundial, desta vez vinda pelas imagens televisivas, as quais apresentam o horror de forma essencialmente banalizada: 

1995. A mesma palavra horror volta, em toda a sua intensidade e dramatismo, à mente do filho mais velho do seu Zé Miguel. É como se estivesse vendo o pai, morto não faz muito, repetindo-a ao assistir, pela televisão, depoimentos de militares, de generais a pracinhas, que falavam, 50 anos depois, do que fora aquela experiência traumática, que a todos marcara para sempre. / A palavra “horror”, dita no começo com tamanha ênfase, tem um poder catalisador. Só ela existe. Tudo centraliza. Agora devolve o pai morto, e o que ele certamente diria se estivesse ouvindo o depoimento do militar, que falava para a televisão da maneira mais calma, mais didática. Tranquilo, olhar firme, postura ereta, rosto marcado pelos anos, cabeleira branca e rala, relembrava sua participação na guerra sem aparente emoção – e de como nela se acostumara a matar. E o matar, sumido o antigo horror, lhe parecendo um ato normal, banal – nada mais, nada menos.  (MIGUEL, 2000, p. 128-130) 

Estendendo seu domínio para o âmbito da literatura, os meios de comunicação de massa, nos quais predomina uma “unidade da informação” alojada em bancos de dados (LE GOFF, 1992, p. 542), tornaram o mundo do pós-guerra, onde “torneiras jorram anúncios, aparelhos de micro-ondas navegam e naufragam pela Internet, sérvios matam albaneses, albaneses matam sérvios, polícia é bandido e bandido é testemunha de Jeová” (KRAUSE, 2000, p. 162) – e, podemos acrescentar, organizações terroristas derrubam os “monumentos” da economia norte americana –, paradoxalmente, “banal” e “espetacular”. Numa palavra, “absurdo”. 


2.4 – O hibridismo na literatura regionalista da atualidade


O hibridismo literário com os meios de comunicação de massa estaria presente até mesmo numa outra forma de literatura, produzida no Brasil na atualidade: aquela que, sem seguir exatamente os moldes da literatura regionalista do passado – baseados, segundo Alfredo Bosi, na herança realista de “fidelidade ao meio a descrever” (BOSI, 1977, p. 232) –, se apropria de alguns de seus elementos, recriando-a. Para Lúcia Miguel Pereira, que considera o Jeca Tatu, personagem criado por Monteiro Lobato, “a única personagem-símbolo do nosso regionalismo, (...) surtos regionalistas aparecerão sempre em nossa literatura, que vive repartida entre a sedução intelectual estrangeira e o anseio de se nutrir da cultura popular. No acordo entre o que é nosso e o que importamos estará certamente o mais seguro dos caminhos para a ficção” (PEREIRA, 1988, p. 182).

Considerado por Carlos Nelson Coutinho como “um grande protesto literário contra o modo ‘prussiano’ de modernizar o País”, o romance regionalista seria ainda, para esse autor, uma forma de “criar uma cultura não elitista, não intimista, ligada aos problemas do povo e da Nação. Uma cultura, em suma, nacional-popular” (COUTINHO, 2000, p. 28).

Os romances de Antônio Torres, trabalhando numa linha que tenta conciliar “o que é nosso” – o Brasil regional – com a modernidade do Brasil urbano, parecem confirmar os pontos de vista de Lúcia Miguel e de Carlos Coutinho. Os livros Essa terra (1976) e O cachorro e o lobo (1997), que têm em comum o mesmo narrador Totonhim, apresentam o sertão nordestino de forma peculiar, em que as tradicionais temáticas regionalistas – como o cangaço, o misticismo religioso, o flagelo das secas e das enchentes – são relegadas a um segundo plano, em favor de uma narrativa subjetiva, calcada na memória – e, portanto, na vivência – do narrador. As personagens de Essa Terra, construídas de modo fragmentário, se movimentam por histórias incompletas, sem começo nem fim, compostas por pedaços de frases e de palavras, dolorosas à lembrança do narrador: 

Primeiro deixe eu levar a minha mãe para um — / Não é um. É uma. Uma casa de — / A filha do finado — A mulher de — A mãe de — / Se todos têm uma cruz a carregar a sua é — / Juízo de gente é um — / (...) Papai, ela está lou —  lou —  lou — / Nós temos que ir para um — Ela perdeu o — de vez. De uma vez por todas. Entendeu o que eu quero dizer. (TORRES, 2001, p. 139 e 142) 

A contradição brasileira entre o moderno e o arcaico não é percebida, em Essa terra, apenas pela relação sertão versus litoral, mas sobretudo pelo contraste entre o Brasil do “Norte” e o Brasil do “Sul”, à maneira de Jacques Lambert, em seu clássico estudo Os dois Brasis. Em tal dicotomia, o “Brasil do Sul” de Essa terra é visto como o responsável pela exploração/espoliação da força de trabalho nordestina, e pela perda das terras, que o Banco, moderno e sulista, acaba por usurpar dos seus donos. Observe-se que a narrativa, ocupando-se da história de Nelo – o irmão do narrador que, após se evadir para São Paulo, cidade vista como o El Dourado brasileiro, onde todos são ricos, retorna, fracassado, ao Junco, sua terra natal, no sertão da Bahia, aí se suicidando –, marca o contraste entre as duas regiões não apenas pela desigualdade econômica e social entre elas, mas por meio do código da escrita, que surge como um elemento de diferenciação essencialmente subjetivo: 

Agora o filho parecia se envergonhar dele, porque não respondia suas cartas, isto é, os recados que a mulher esgarranchava em suas próprias cartas, já que ele, o velho, mal sabia assinar o nome em dia de eleição, o que não era vergonha, todos aqui são assim: desde que se aprende a votar, não se precisa saber mais nada. Sua escrita era outra e essa ele tinha orgulho de fazer bem: riscos amarronzados sobre a terra arada, a terra bonita e macia, generosa o ano inteiro, desde que Deus mandasse chuva o ano inteiro. A melhor caneta do mundo é o cabo de uma enxada. (TORRES, 2001, p. 68)

            Em O cachorro e o lobo (1997), cujo título já encerra a dicotomia entre “o domesticado”, próprio da civilização, e “o selvagem”, pertencente à barbárie, encontram-se também os “sinais de um novo tempo” – um tempo tecnológico – invadindo e transformando a paisagem arcaica: 

Antenado com o admirável novo mundo eletrônico, o prefeito ostenta uma flor metálica sobre o seu telhado rudimentar, singela obra artesanal engendrada outrora em olarias como a que o meu pai já teve. A peça de escultura modernosa é um contraste na singularidade da paisagem. Mais parece um guarda-chuva aberto ao contrário. Ou um girassol cibernético, símbolo do desenvolvimento tecnológico nacional, o que esse mundo velho não pode ignorar. Montado de teto em teto, forma um desordenado jardim suspenso, como o cenário de um filmete de TV patrocinado por uma empresa interplanetária de telecomunicações. Eis aí as antenas parabólicas, a rastrearem os sinais de um novo tempo. Chamemos a isso de progresso. Pelo que os nativos nos agradecerão, com um sorriso. Por não estarmos chamando-os de tabaréus da roça. De capiaus. (TORRES, 1997, p. 160) 

Este estranho “jardim tecnológico” encontra seu embrião na narrativa anterior, Essa terra, a qual dá continuidade: “uma nova era haveria de começar numa terra sempre igual a si mesma, dia após dia: gente se amontoando na janela do sargento, para ver a novela das oito, na televisão – esse milagre que só um homem da capital poderia nos ter revelado” (TORRES, 2001, p. 53), e na qual o tempo é percebido como algo que só pode ser controlado pelos da “cidade grande”: 

Daqui a pouco saberei as horas certas, na cidade dos comerciantes que vieram de longe e hoje têm um perfeito domínio do seu tempo. Estamos chegando. Esta cidade é assim: um mundo de portas de lojas que se abrem e se fecham, uma vida em dois tempos, abrir e fechar, fechar e abrir; dois únicos movimentos dentro do tempo. (op. cit, p. 164) 

Observe-se ainda que o romance Essa terra, publicado em 1976, embora sem fugir ao paradigma de “literatura de denúncia” vigente na época, uma vez que aborda a questão da terra, denunciando a ação dos “representantes sulistas” no Nordeste, o faz porém de um ângulo essencialmente subjetivo, ancorado ainda no memorialismo.

Por sua vez, o conto “O ataque”, de Luiz Ruffato, traz à cena contemporânea a história de uma família, emigrada do ambiente rural, que havia trocado as “enchentes que estragavam com tudo” por uma “casinha quatro-cômodos” num vilarejo industrial nos arredores de Cataguases, Minas Gerais. Com as mudanças de cidade e de trabalho, novas modificações são introduzidas na vida da família: “Meu pai, com a ajuda do Reginaldo e da Mirtes, meus irmãos, comprou a prestações uma televisão Telefunken vinte-e-três polegadas para minha mãe poder acompanhar as novelas” (RUFFATO, 2001, p. 226). O rádio também desempenha lá seu papel, “entre verduras desmaiadas”, na venda do pai, sintonizado na Rádio Aparecida, enquanto Reginaldo, o irmão, dono de um “rádio-a-pilha Semp vermelho, girava e regirava o dial à cata de alguma estação de ondas-curtas, que estivesse transmitindo em português àquela hora” (op. cit., p. 228). Inusitadamente, porém, tais produtos da indústria cultural se transformam, no ambiente do lugarejo, no conto, em “ameaças”, graças a uma notícia vinda de Londres que, supostamente, falava num bombardeio sobre Cataguases, ouvido/imaginado pelo narrador, levando a população local a confiscá-los da família: 

Minha mãe aguou. À tardinha, sentada na poltrona da sala, a porta às escâncaras, nenhuma brisa a espanar o calor, os olhos esmaecidos tropeçavam nos desenhos do bordado da toalha que cobria a mesinha, onde, até há pouco, lembra?, pousava a televisão, a nossa televisão, que nem tínhamos acabado de pagar ainda. (ibid., p. 236) 

Em completo contraste com as narrativas regionalistas de Antônio Torres e Luiz Ruffato, de caráter memorialístico e calcadas no subjetivismo, o livro Polígono das Secas, de Diogo Mainardi, publicado em 1995, faz uma abordagem da literatura regionalista de um ponto de vista essencialmente crítico e sobretudo cético. “Nota discrepante no cenário da ficção brasileira dos últimos anos”, como observa Terezinha Barbieri (BARBIERI, 1997, p. 298), o livro de Mainardi tem suscitado muita polêmica, pois “não é obra que se submeta à ganância do mercado nem visa agradar o leitor” (op. cit., p. 289). Deixando de lado a clássica concepção de literatura regionalista que vigora desde o Romantismo, Polígono das Secas favorece antes uma visão “vanguardista” desse gênero literário. Para Terezinha Barbieri, Polígono das Secas parece retomar “alguns princípios das vanguardas, e dar um pontapé na banalização promovida pelos meios de comunicação de massa, chutando a pasteurização global e a previsibilidade do discurso jornalístico” (ibid., p. 301).

Em seus curtos capítulos, Polígono das Secas descreve episódios grotescos e cruéis, protagonizados por personagens inspirados na literatura regionalista brasileira, tais como coronéis, jagunços, retirantes, vaqueiros e cangaceiros, os quais se acham circunscritos a uma área geográfica bem delimitada: precisamente, o “Polígono das Secas”, ou seja, “a área dos Estados sujeitos aos efeitos da seca”, que vai “de João Pessoa até as nascentes do Uruçuí-Preto, no Piauí; de Pirapora, em Minas Gerais, até a embocadura do Longá, à margem direita do Parnaíba” (MAINARDI, 1995, p. 17). Este é, também, o território da ação do untor, personagem que, com seu unto amarelado e mortífero, espalha o horror no interior do polígono, a fim de se vingar de uma certa Catarina Rosa, ou de todas as Catarinas Rosas possíveis: “o objetivo do untor é infectar com o unto amarelado todas as sertanejas chamadas Catarina Rosa” (op. cit., p. 18).

Diferentemente dos outros personagens, o untor não tem origem na literatura regionalista, mas, como esclarece o narrador do romance, num “infausto personagem histórico italiano”, que, em 1630, durante uma epidemia, teria sido acusado por uma certa Caterina Rosa de ajudar a disseminar a peste em Milão, utilizando um unto amarelado supostamente “feito com saliva de cadáveres infectados, barrela e esterco humano”. A ação do untor sertanejo, espalhando unto infectado no território do Polígono das Secas, é justamente o elo de ligação entre os diversos episódios narrados. Mas, “de que se trata?”, pergunta Terezinha Barbieri (BARBIERI, 1997, p. 299). “Trata-se de uma metáfora sobre a literatura” (MAINARDI, 1995, p. 34), e, especificamente, sobre a literatura regionalista, conforme esclarece o narrador do romance:A intenção do autor ao associar esse infausto personagem histórico italiano à tradição sertaneja é criar um paralelo entre os efeitos desastrosos de suas crendices sobre a magistratura da época e a assimilação de crendices semelhantes por parte da nossa literatura regionalista” (op. cit., p. 61).

Assim, com a pretensão de colocar sob suspeita a literatura regionalista produzida no Brasil desde O sertanejo, de José de Alencar, passando por autores como Euclides da Cunha, José Lins do Rego, José Américo de Almeida, Graciliano Ramos, entre outros, o narrador – espécie de porta-voz do autor do romance – reduz essa literatura a um “punhado de temas repetidos incessantemente por seus autores. Em seis ou sete títulos encontram-se todos os temas da literatura regionalista. Os autores menores lidam com os mesmos temas dos autores maiores, criando uma certa desconfiança em relação a estes últimos” (ibid., p. 88).

O narrador, preocupado em colocar sob suspeita a literatura regionalista, assume, paradoxalmente, um posicionamento de “fanático que deblatera do alto de uma pedra, tomado pelo tom colérico do discurso” (p. 90), numa irônica alusão à figura de Antônio Conselheiro, apropriada por Euclides da Cunha em Os Sertões. No entanto, para o narrador de Polígono das Secas, o que interessa não é o sertão real, concreto e “empírico”, mas o sertão da literatura regionalista, tão imaginário quanto “aquela abstração legislativa denominada Polígono das Secas” (p. 116). Deste modo, exercendo ainda uma denegação da relação entre literatura e história, “o autor deste romance é tão categórico em suas convicções que nem mesmo se deu ao trabalho de visitar o sertão. O sertão literário é mais importante que o sertão real. Assim sendo, suas únicas fontes de referência são livros e mapas” (op. cit., p. 116).

Ironizando o próprio leitor, “subalterno em relação ao autor”, sem “qualquer direito a intervir com interpretações próprias” (ibid., p. 116), o “narrador-autor” de Polígono das Secas, extrapolando o território que circunscreve a ação do untor, com seu demolidor unto amarelado – no final do romance, o untor, pendurado pelo estribo, é arrastado pelo jerico encantado, que atravessa o Polígono das Secas e chega à orla marítima de João Pessoa – pretende atingir não apenas a literatura regionalista brasileira, mas toda a literatura: 

Antes de tudo, a literatura regionalista não pode ser vista como um fator isolado, mas como uma perfeita representação da cultura deste século. Cada literatura tem seus próprios sertanejos. Os sertanejos estão por todas as partes. No grandioso projeto do autor, destruir a literatura regionalista corresponde a destruir a literatura universal. (p. 117) 

Contra os dogmas literários, a ambição do narrador “é conceber uma verdade irrefutável, eterna, de sabor bíblico”, sintetizada numa única sentença, ironicamente dogmática: “Quando a literatura não mata a humanidade, é a humanidade a matar a literatura” (MAINARDI, 1995, p. 118).

Se Polígono das Secas não se identifica com o “cinema industrial”, produto típico da indústria cultural, feito para o consumo das massas – e ao qual Terezinha Barbieri parece se referir, em suas reflexões acerca do “hibridismo semiótico” da literatura brasileira contemporânea –, por outro lado, o romance “antirregionalista” de Diogo Mainardi se identificaria com outro tipo de cinema. Em seus filmes “peliculamente incorretos”, ensaísticos e experimentais, Glauber Rocha procura a afirmação de um cinema contraposto ao “cinema industrial”, um cinema que não represente um simples “udigrudi”17 do cinema do “colonizador”, como as pornochanchadas, duramente criticadas por ele: 

Até quando o México vai insistir em conservar os mitos do cinema industrial? Quando os jovens diretores mexicanos vão inventar algo mais revolucionário e deixar de fazer películas corretas para incluí-las na indústria da mediocridade? (Glauber Rocha, carta a Alfredo Guevara, junho de 1967, citado por VENTURA, 2000, p. 252). 

Como parte do projeto de “descolonização cultural”, a Estética da Fome,18 de Glauber Rocha, que problematiza a relação entre estética e política no contexto de uma economia de “capitalismo dependente”, estabelece um novo conceito: o de “cinema ideogramático”. Segundo tal conceito, os elementos da cultura popular – vista como frente de resistência, ainda que pacífica e inconsciente, aos valores do imperialismo cultural e econômico – devem ser apropriados criticamente, para a recriação de uma nova linguagem. Tal forma estética propõe ainda a transposição de um problema moral e político – que inclui a precariedade do cinema do Terceiro Mundo como reflexo das condições do subdesenvolvimento, tematizado por ele – para o campo estético. Como observa Ismail Xavier, “a fome como metáfora permite nomear um estilo de fazer cinema. Um estilo que permite redefinir a relação do cineasta brasileiro com a carência de recursos, invertendo posições diante das exigências materiais e as convenções de linguagem próprias ao modelo industrial dominante” (XAVIER, 1983, p. 10).

Embora Glauber Rocha pareça “duvidar que o homem rude do sertão possa alcançar, em algum nível, a consciência crítica de sua miséria” (VENTURA, 2000, p. 181), a cultura popular é vista por ele como espécie de “guardiã” dos valores tradicionais, que resistem à colonização “modernizante”, mas não são capazes de agenciar uma ação política. Nesse paradoxo residiria, para Glauber Rocha, todo o “impasse” e a “impossibilidade” do Terceiro Mundo: o cineasta percebe o “destino” do povo (sem identidade) brasileiro irremediavelmente atrelado ao destino do colonizador, que conduz a cultura e a economia terceiro-mundista. Essa perspectiva trágica do pensamento de Glauber Rocha estaria presente em filmes como Deus e o Diabo na Terra do Sol e Terra em Transe, nos quais “o povo é visto como uma entidade abstrata, signo de um Brasil inculto, bárbaro, ressentido e faminto” (VENTURA, 2000, p. 210). Assim, a cultura popular buscada por Glauber Rocha como “guardiã da nação” não desafia – porque não tem forças suficientes nem consciência da sua posição de dominado – a dominação exercida pelo “complexo colonizador” do Ocidente. 

Com uma praxis essencialmente voltada para a luta do cinema latino-americano frente ao imperialismo cultural do “cinema industrial do colonizador”, seja ele “o americano” ou “o europeu”, Glauber Rocha, porém, “estava isolado na cena cultural brasileira” (op. cit., p. 241), visto com desconfiança pela ditadura militar, e sem o apoio de grande parte dos intelectuais da esquerda, numa posição sobretudo “ambígua”: 

O filme [Terra em Transe] foi acusado de fascista por alguns e de anárquico e amoral por outros, fato que tinha ocorrido com o filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, a partir do qual Glauber seria chamado de “gênio”, consagrado pelo público europeu e brasileiro. (...) No contexto da consolidação da ditadura, da emergência da luta armada, da tortura e da perseguição daqueles que discordavam do autoritarismo, Terra em Transe denuncia a fragmentação dos valores ético-políticos, seja nas elites, seja nas massas, e a ausência de um processo revolucionário. (ibid., p. 242)

Embora não seja comumente identificado com o ceticismo, Glauber Rocha, nesse filme, adotaria um posicionamento muito próximo da “visão de mundo” cética, na medida em que aponta o “impasse” do Terceiro Mundo, denunciando a idealização romântica do conceito de povo e a “pseudopedagogia” teórica e abstrata das esquerdas brasileiras de um ponto de vista que, porém, “suspende” o julgamento sobre elas. Conforme comenta Tereza Ventura: “O transe aponta a ideia de que não existe uma realidade acabada, que esta não opera no registro de uma racionalidade histórica, temporal e intelectual como resultado de uma razão conservadora alheia à ‘especificidade complexa e ambígua’ do Terceiro Mundo” (ibid., p. 242).

Por outro lado, a prática cultural de Glauber Rocha parece se aproximar dos conceitos gramscianos de “intelectual orgânico” e “nacional-popular”, segundo os quais haveria uma articulação entre os intelectuais e o povo, gerando a figura do “intelectual orgânico”. Carlos Nelson Coutinho, adotando em sua análise sobre Lima Barreto tais conceitos, observa que, no caso do autor de Recordações do escrivão Isaías Caminha, “não se tratava de contrapor o ‘nacional’ ao ‘estrangeiro’, mas de distinguir, no seio do patrimônio cultural tornado universal, entre o que poderia se tornar elemento organicamente nacional-popular de nossa própria cultura ou, ao contrário, o que serviria para reforçar o predomínio das correntes elitistas e ‘intimistas’” (COUTINHO, 2000, p. 67). Assim, na medida em que Glauber Rocha se apropria dos elementos da cultura popular para o estabelecimento do conceito de “cinema ideogramático”, estaria ensaiando uma experiência “orgânica” da cultura brasileira, frente ao diálogo desta com o “patrimônio cultural universal, que lhe serviu e serve de inspiração e alimentação permanente” (op. cit., p. 60).

A estética tanto “experimental” quanto polêmica de Glauber Rocha se voltaria, fundamentalmente, para a questão do modo de se produzir a cultura no Brasil, colocando sob suspeita, desta forma, a produção cultural brasileira e, especificamente, a cinematográfica. De idêntico modo, o romance de Diogo Mainardi, apropriando-se criticamente dos elementos da literatura regionalista, tal como proposto pelo conceito glauberiano de “cinema ideogramático”, abordaria não somente a questão da “identidade literária” da literatura regionalista no Brasil, mas sobretudo o modo de produção da literatura brasileira, e da literatura de um modo geral, aproximando-se, assim, das questões suscitadas pelo cinema de Glauber Rocha: “De fato, a contrariedade do autor em relação à literatura regionalista é um mero subterfúgio para abordar argumentos mais relevantes” (MAINARDI, 1995, p. 116).

À maneira da “intervenção em off” de Glauber Rocha em seus filmes, em que a voz do diretor interfere diretamente nas cenas,19 o narrador impessoal de Polígono das Secas abandona sua posição para assumir a fala do próprio autor: “O autor deste romance intervém novamente; no caso, com a bibliografia. A intervenção pode desagradar o leitor, mas o autor não se incomoda. O romance é dele – tem o direito de intervir como bem entende. É sua única prerrogativa” (op. cit., p. 88).

A interferência direta do autor na narrativa, em Polígono das Secas, lembra ainda a “destruição da montagem”, outro recurso empregado por Glauber Rocha em Idade da Terra. Por meio deste recurso, é apresentado, em cena aberta, o diálogo entre os atores e o diretor, no qual este último, em sua função de “dirigir o filme”, acaba por impor sua “vontade” na construção das cenas: “Para que o leitor não possa adulterar o presente romance com interpretações próprias, o autor irá esclarecer o seu verdadeiro significado, ainda que acabe restringindo demasiadamente o alcance de sua obra” (ibid., p. 116). No entanto, ao contrário de Glauber Rocha, que trabalharia a cultura popular brasileira de modo “orgânico”, à maneira gramsciana, Diogo Mainardi radicaliza, de uma perspectiva pessimista, a relação do intelectual com a cultura popular: do seu ponto de vista, os intelectuais não se interessariam pelo “sertão real”, mas apenas por aquele retratado nos “mapas e livros”.

Por fim, poder-se-ia dizer ainda que, em Polígono das Secas, da mesma forma que “o leitor não conta” (p. 116), também o autor não contaria, e que esse romance poderia ter sido escrito por qualquer autor regionalista, dos “maiores” ou “menores”. Embora ironizando a literatura regionalista e satirizando os seus tipos, o que Diogo Mainardi acaba fazendo, em seu Polígono cético, à semelhança de Cervantes com relação às novelas de cavalaria,20 no Quixote, é prestar uma homenagem à literatura regionalista e aos seus mitos, na medida em que deles se apropria para exercer a sua crítica da literatura e da cultura. Assim, em Polígono das Secas, a literatura regionalista brasileira, colocada “sob suspeita”, acaba porém por ser resgatada do esquecimento, numa época em que prevalece a lógica do “mercado editorial”, que transforma a literatura em objeto para o consumo imediato.


PARTE II

Nunca será demais insistir no carácter arbitrário da antiga oposição entre arte e filosofia. Se quisermos interpretá-la num sentido muito preciso, é certamente falsa. Se quisermos simplesmente significar que essas duas disciplinas têm, cada uma delas, o seu clima particular, isso é verdade sem dúvida, mas muito vago. (Albert Camus, in O mito de Sísifo)


CAPÍTULO 3

AS RELAÇÕES ENTRE LITERATURA, HISTÓRIA E JORNALISMO 

Os discursos devem ser tratados como práticas descontínuas, que se cruzam por vezes, mas também se ignoram ou se excluem. (Michel Foucault, in A ordem do discurso, p. 52)

A discussão sobre as relações entre História e Literatura, geralmente realizada de um ponto de vista dicotômico, de acordo com o qual a primeira pertenceria ao âmbito da “realidade”, e a segunda, ao da “ficção”, remonta à Grécia Antiga e à chamada “disputa discursiva” que teve lugar entre sofistas e platônicos-aristotélicos. Estes últimos, vitoriosos, conquistaram, definitivamente, um papel hegemônico no pensamento ocidental, que passou a separar os discursos de acordo com uma noção bipolarizada de “verdadeiro” e “falso”. Para Maria Cristina Franco Ferraz, estudiosa da questão da recusa da sofística pela filosofia platônico-aristotélica, 

como consequência de todo esse processo, passou-se a julgar outras práticas discursivas a partir de pressupostos que lhe eram alheios, garantindo-se assim sua condenação e atribuindo-se simultaneamente à filosofia [platônico-aristotélica] o papel de único logos legitimado. Esse procedimento marcou definitivamente o pensamento ocidental, constituindo as balizas que fundam, em geral, nosso pensamento e nossas práticas discursivas, bem como a separação, até hoje vigente, entre os campos da ficção e da não-ficção. (FERRAZ, 1999, p. 29) 

Radicalizando o ponto de vista de Platão – baseado na “lógica da unidade” e na rejeição à “lógica da dispersão”, que culmina na expulsão dos poetas da República –, Aristóteles tenta superar o dilema platônico, revelador da insuficiência da linguagem, e expresso no paradoxo “o ser é e o não-ser não é”, que atribui uma existência, ainda que puramente linguística, ao não-ser. Para solucionar tal impasse e garantir a exclusão definitiva da sofística, Aristóteles substitui a equivalência platônica entre “dizer”, “pensar” e “ser” pela equivalência entre “dizer” e “significar”, conferindo assim uma “decisão de sentido” à sua equação (op. cit., p. 12). Para ele, os sofistas, “pseudofilósofos” que trabalham com jogos de linguagem e, portanto, com a “lógica da dispersão”, são, também, “plantas que falam”, uma vez que falam não para significar algo, mas pelo simples “prazer de falar”. Assim, Aristóteles não “expulsa” os poetas somente da República, como fez Platão, mas da própria espécie humana: “Aristóteles, fazendo equivaler exigência de não-contradição e exigência de significação, chega a marginalizar os refratários e a relegá-los, ‘plantas que falam’, aos confins não apenas da filosofia, mas da humanidade” (CASSIN, 1990, p. 10).

O discurso hegemônico na cultura ocidental é, pois, de acordo com este ponto de vista bipolarizado, aquele que detém a “verdade”, em oposição ao discurso “falso”, ao discurso que não fala para “significar alguma coisa”, mas para “dizer o que não é”, o não-ser, lidando apenas com as “aparências”, e não com o mundo transcendental e real das ideias (FERRAZ, 1999). Assim, herdeiro da base dualista de caráter platônico, que opõe a “essência” à “aparência”, o pensamento ocidental efetuaria uma separação radical entre os discursos da “verdade” e da “ficção”, que se acham ainda, conforme Luiz Costa Lima, estruturados hierarquicamente segundo um “princípio de verdade” (LIMA, 1989, p. 92-3).

De caráter revisionista, os estudos desconstrucionistas de Hayden White e Peter Gay, na década de 1970, tentam superar a oposição entre os discursos historiográfico e literário. Para Peter Gay, o estilo – considerado por ele espécie de “tributo que a capacidade de expressão paga à disciplina” (GAY, 1990, p. 25) – é recurso comum à literatura e à história, pois “as técnicas estilísticas, empregadas pelos historiadores para expor suas verdades, apresentam uma semelhança notável com as técnicas empregadas por romancistas e poetas para expor suas ficções” (op. cit., p. 171). Do ponto de vista de Hayden White, as narrativas históricas, consideradas como construtos essencialmente ficcionais, não são a própria História, mas apenas “representações” dela. Ou seja, para ele, os textos históricos seriam artefatos literários, “representando” a História por meio de diversas formas de “urdiduras de enredo” (WHITE, 1994, p. 100).

Abordando as relações entre literatura e História, Costa Lima também discute o caráter ficcional da História, embora este não seja reconhecido, uma vez que comprometeria a pretensão de “cientificidade” e “verdade” do discurso historiográfico (LIMA, 1989). Quanto à questão da narrativa – organização temporal que, ao mesmo tempo, ordena e constitui a escrita –, o teórico a considera (e propõe) como ponto comum entre os dois tipos de discurso, uma vez que “o desenvolvimento do romance se dá pari passu com o desenvolvimento da escrita da História. História e romance são formas discursivas firmadas sobre o mesmo veículo: a prosa narrativa” (LIMA, 1991, p. 148). Para Pedro Brum Santos, por sua vez, “a discussão acerca das relações entre ficção e História deve considerar como ponto de partida o dado de que as duas são formulações de linguagem” (SANTOS, 1996, p. 15), ou seja, são “construções discursivas”.

 

3.1 – O surgimento do romance

 

A antiga disputa entre a ontologia e a sofística, na qual esta última, condenada como “pseudo-filosofia”, foi reduzida ao silêncio, teria assumido, na época moderna, mais precisamente no século XIX, a feição de uma nova disputa pela hegemonia do discurso, desta vez entre a História e a Literatura.21 Para Barbara Cassin, “passa-se assim da ontologia às ciências humanas, e da sofística à literatura” (CASSIN, 1990, p. 15). Como “resposta ao interdito filosófico”, surge, no âmbito da literatura, o romance: 

A bem considerá-lo, o romance constitui uma resposta completamente original ao interdito filosófico. Pois o romance é um pseudos que se sabe e se reivindica pseudos, um discurso que renuncia a toda adequação ontológica para seguir sua demiurgia própria: trata-se de falar, não para significar alguma coisa, mas pelo prazer de falar, e de produzir assim um efeito-mundo, uma “ficção” romanesca. E a popularidade dos romances, reatando com a tradição fundadora dos Poemas homéricos, acaba por constituir o avatar cultural de um consenso político, estendido graças à pax romana até os confins do mundo habitado. (op. cit., p. 14)  

A narrativa romanesca, abandonando o elemento maravilhoso presente nas novelas de cavalaria da época medieval, que associa, ao mesmo tempo, magia e religião,22 traz, para o âmbito da literatura moderna, o “desencantamento do mundo” estudado por Max Weber (1979). Como forma “racionalizada” de narrativa, o romance irá negar o par magia/religião, característico do “duplo medieval” e presente nas “maravilhas” das novelas de cavalaria, adotando, ainda, o prosaico, o corriqueiro e o cotidiano como matérias-primas básicas.

O aparecimento do relógio, no século XIV, e o deslocamento do eixo de organização temporal da sociedade do tempo cíclico da festas para o tempo abstrato e linear da produção marcam a passagem do “tempo vivido” para o “tempo do mercador” – e deste ao “tempo do capitalismo industrial” – conforme observa Martín-Barbero (1987, p. 143). Esta nova noção do tempo baseia-se em “uma nova moral e uma nova piedade”, em que “o tempo valorizado, ou melhor, a fonte do valor, já não é o da circulação do dinheiro e das mercadorias, mas o da produção, o do trabalho enquanto tempo irreversível e homogêneo” (op. cit.). Para Martín-Barbero, o saber mágico – “um dos modos de expressão fundamentais da consciência popular”, representado sobretudo pela feiticeira, síntese de um “mundo descentrado, horizontal e ambivalente” –, entrando em conflito com a “nova razão vertical, uniforme e centralizada”, deve ser, necessariamente, abolido: 

No solapamento dessa consciência, a escola vai desempenhar um papel preponderante. (...) A aprendizagem da nova sociabilidade começa pela substituição da nociva influência dos pais – sobretudo da mãe – na conservação e transmissão das superstições. E passa sobretudo pela mudança nos modos de transmissão do saber. (...) A nova pedagogia neutralizará a aprendizagem ao intelectualizá-la, ao convertê-la em uma transmissão desapaixonada de saberes separados uns dos outros e das práticas. E daqui, mais ainda que dos julgamentos e tortura das bruxas, será de onde começará a difundir-se entre as classes populares a desvalorização e o menosprezo de sua cultura, que depois passará a significar unicamente o atrasado e o vulgar. (ibid., 1987, p. 145-6) 

Ao inserir-se na esfera “dessacralizada” da racionalidade moderna, dominada pela noção de tempo linear, o romance – que se configurou como tal a partir do século XVIII, tendo como um dos seus precursores o Tom Jones, de Henry Fielding (1749) – passa, também, a empreender uma tentativa de representação do tempo real, introduzindo nexos temporais entre os episódios, e conferindo-lhes uma sequência narrativa linearizada: “O romance romântico e, mesmo antes, o romance sentimental do século XVIII, procuraram tornar os lapsos de tempo menos bruscos: a narrativa passou a tentar a representação do tempo real” (LAGE, 1987, p. 19).

Observe-se que, nesta ordenação sequencial da narrativa literária, o romancista – tal como o historiador, na seleção dos acontecimentos históricos – busca selecionar os fatos mais relevantes para o desenvolvimento da trama. Essa tarefa obedece ainda a um critério na seleção dos fatos, possuindo correspondência com a tarefa do historiador do século XIX, para quem o documento passa a constituir um critério decisivo na seleção dos fatos e na ordenação sequencial deles.

Apenas Lawrence Sterne irá contrariar, no Tristam Shandy (1760-1767), o princípio de desenvolvimento linear da narrativa estabelecido no século XVIII, utilizando, nesse romance, uma técnica narrativa baseada na ideia de tempo psicológico. Tal técnica sterniana, adotada, segundo Costa Lima, por Machado de Assis em seus romances da chamada “segunda fase”, “não pretende ajudar a verossimilhança do enredo, mas, ao contrário, embaralhá-la, criar-lhe obstáculos, assim interditando o envolvimento sentimental do leitor” (LIMA, 1981, p. 60).

Surgindo numa época de transição que caracterizou a passagem do século XVI para o XVII na Europa, com o chamado “segundo Renascimento”, o Dom Quixote, de Cervantes, cuja primeira parte foi publicada em 1605, é considerado por muitos como o fundador do romance moderno, uma vez que se contrapõe ao paradigma renascentista da imitatio greco-latina. Na obra cervantina, ao contrário das demais novelas de cavalaria, a “maravilha”, tal como se verifica nessas, não existe. Ou, de outro modo, o que se pode perceber, no Dom Quixote, é uma ironização da perspectiva mágico-maravilhosa, herdeira da tradição céltica-bretã, que, aliada ao Cristianismo antigo e à influência árabe na Península Ibérica, vigorou na Europa durante boa parte da Idade Média, caracterizando o imaginário medieval, e que acabou por tornar-se elemento fundamental da literatura cavaleiresca. Como observa José Landeira Yrago: 

A literatura cavaleiresca é o pulmão dos ideais heroicos da Idade Média. (...) Anterior às crises iniciadas pelo Renascimento e a Reforma, inspirava-se em antigas lendas de Tebas, Enéias e Tróia; em temas do ciclo artúrico-bretão-carolíngio ou de origem oriental e no repertório das Cruzadas. Exuberância de elementos maravilhosos – palácios encantados, câmaras nigromânticas, objetos automáticos, etc., etc. – se incorporava, não obstante, ao plot da narrativa, tendo em vista pôr à prova o ânimo dos protagonistas. (YRAGO, In: CERVANTES, 1960, p. 1073) 

Assim, mais do que satirizar as novelas de cavalaria medievais, o que estaria sob um exame rigoroso, de caráter cético, no Quixote, seria a perspectiva, ou visão de mundo, na qual elas se fundam. Pela tematização da loucura de Dom Quixote, que o levava a ver uma coisa em lugar de outra, e a crer no poder de nigromantes e feiticeiros, que teriam o dom de transformar a aparência das coisas, enganando os homens em sua busca da “verdade”, Cervantes teria efetuado em sua obra um deslocamento da perspectiva da explicação mágico-religiosa do mundo, presente nas novelas anteriores, sem contudo oferecer, pronta e acabada, uma nova explicação. O herói cervantino é aquele que, abandonado pelas forças ocultas da magia ou transcendentais da religião, se defronta com um mundo subitamente desprovido de fronteiras – o mundo da Europa renascentista –, com o qual está sempre a pelejar. 

 

3.2 – Os primeiros jornais e a emergência da “razão prática”

 

Surgidos em Bremen e Estrasburgo em 1609, em Colônia em 1610, em Frankfurt, Basileia, Hamburgo, Amsterdã e Antuérpia até 1621, em Londres em 1621, e em Paris em 1631 (LAGE, 1987, p. 11), os primeiros jornais seriam, deste modo, anteriores ao formato definitivo do romance. Já no século XIX, com o “jornal ilustrado, que faz sua aparição em 1832 com o Penny Magazin de Londres, introduz[indo] (...) a primeira cultura de massa” (MARTÍN-BARBERO, 1987, p. 169), a imprensa encontra-se, assim como a História e a Literatura, plenamente estabelecida. No entanto, diferentemente dos discursos historiográficos e literários, a notícia – “razão de ser” do jornal – inaugura, desde mesmo o seu aparecimento, uma terceira forma discursiva, que teria como fundamento uma razão sobretudo prática, e, desde já, baseada na lógica do mercado: 

Nos primeiros jornais, a notícia aparece como fator de acumulação de capital mercantil: uma região em seca, sob catástrofe, indica que certa produção não entrará no mercado e uma área extra de consumo se abrirá, na reconstrução; a guerra significa que reis precisarão de armas e de dinheiro; uma expedição a continentes remotos pode representar a possibilidade de mais pilhagens, da descoberta de novos produtos ou de terras próprias para a expansão de culturas lucrativas, como a cana de açúcar e o algodão. (LAGE, 1987, p. 11) 

Analisando as formas de literatura que fazem a mediação entre a cultura erudita e a cultura popular, como a literatura de cordel do século XVII na Espanha e na França, Jesús Martín-Barbero constata que este modo de literatura – sobretudo “sonoro”, em oposição à “leitura silenciosa do letrado” – “lança as bases daquilo que mais tarde seria o jornalismo popular” (MARTÍN-BARBERO, 1987, p. 162). Como na “notícia” dos primeiros jornais, a matéria da literatura de cordel eram os “acontecimentos”, sobretudo relatos de crimes, “uma descrição sem adornos, com seu tom de ‘objetividade’ nos detalhes e sua busca das ‘causas’”, em que “se encontravam os sinais do jornalismo sensacionalista” (op. cit.).

Inicialmente ligada a motivos religiosos e a santos, substituídos depois por temas da vida cotidiana, a indústria da iconografia popular – possível desde o século XV com a gravura e, posteriormente, com a xilografia e a água forte, no século XVII –, aliada ao gosto pelo sensacionalismo, é adotada pela empresa jornalística (ibid.). Com o advento da fotografia e sua utilização pela imprensa (fototipia) – transformada em empresa comercial graças à revolução tecnológica da prensa rotativa, que passa a imprimir 18 mil páginas por hora, em vez de mil e cem –, o jornal irá conceder um espaço privilegiado à imagem, inaugurando assim uma espécie de “consórcio” entre texto escrito e imagem visual, inexistente nas formas narrativas historiográficas e romanescas, baseadas, ambas, na “força do relato” (Costa Lima).

 

3.3 – O feuilleton francês e o folhetim brasileiro 

 

Da relação entre a literatura e o jornal, mediatizada pelas técnicas de reprodução em massa, surgem em Paris, na primeira metade do século XIX, os romances em série, ou romances-folhetim. Inicialmente, o folhetim é uma “parte do jornal onde iam parar as ‘variedades’, as críticas literárias, as resenhas teatrais, junto com anúncios e receitas culinárias, e não raro com notícias que metiam a política em disfarce de literatura” (MARTÍN-BARBERO, 1987, p. 183). Em julho de 1836, o editor do jornal francês La Presse, Émile de Girardin, começa a publicar, nessa parte do jornal, romances seriados que vêm a ocupar todo o espaço do folhetim. Assim, o termo passa a designar a própria forma narrativa que se estabelecia, “um novo tipo de escritura a meio caminho entre a informação e a ficção, (...) uma escritura que não é literária nem jornalística, e sim a ‘confusão’ das duas” (op. cit., p. 186 e 195). 

Visto por Martín-Barbero como um “fato cultural”, e não meramente literário, além de ser o “primeiro tipo de texto escrito no formato popular de massa”, o folhetim também inauguraria um novo “modo de escrever e de ler” – uma vez que não se encerra na “estrutura fechada do livro, e sim [n]a estrutura aberta do jornal ou dos fascículos de entrega semanal” (ibid., p. 182 e 185). Também o escritor adquiriria um novo estatuto social, passando a ser um “profissional assalariado”.

Com a transformação do jornal em empresa comercial a partir de 1836, a competição entre os jornais parisienses acirra-se, desempenhando papel importante na configuração do romance-folhetim. A disputa pelo aumento de tiragem, resultado da eficiência publicitária, “levou os jornais a ampliar a área de serviços e a incluir em suas páginas os folhetins – histórias seriadas que tinham a vantagem de manter o público cativo –, os horóscopos e os quadrinhos” (LAGE, 1987, p. 13).

O folhetim brasileiro do século XIX, herdeiro embora do feuilleton francês, se distingue, em sua condição de historicidade, radicalmente deste. No Brasil, a transformação do jornal em empresa industrial se dá, efetivamente, apenas nas primeiras décadas do século XX. Em estudo que investiga, a partir de um olhar benjaminiano, as relações entre a literatura e as inovações tecnológicas da Belle Époque no Brasil, introduzidas no país como um dos projetos de modernização, Flora Süssekind observa que as modificações técnicas eram acompanhadas “de um crescimento das tiragens e do número de páginas, de uma agilização da distribuição, do barateamento e da possibilidade de um melhor acabamento gráfico para as folhas. Na verdade, assiste-se, na virada do século, à transformação do jornal numa empresa industrial de certo porte” (SÜSSEKIND, 1987, p. 73). Essa “empresa jornalística” brasileira encontra, no entanto,  no problema do analfabetismo um sério obstáculo: “Daí comentários como os de Samuel de Oliveira, que deixam perceber que, se as tiragens de livros eram pequenas – mil exemplares em geral –, as dos periódicos também não eram propriamente satisfatórias” (op. cit., p. 73). Assim, na época de ouro dos folhetins no Brasil – o século XIX – o analfabetismo irá representar um entrave para a ampla circulação deles, além do fato de não haverem editoras no Brasil, imprimindo-se tudo na França.

Analisando a recepção popular francesa do folhetim Os mistérios de Paris, de Eugène Sue, publicado no Journal des Débats em 1848, Martín-Barbero destaca “o entusiasmo popular crescente” e as “centenas de cartas”, arquivadas na Biblioteca Nacional de Paris, que atestam que o proletariado francês, confundindo a sua própria realidade com as fantasias do folhetim, percebe neste “um convite à mudança e uma justificativa para o levantamento”. Após a publicação de Os mistérios de Paris, Sue foi eleito “como deputado ‘vermelho’ em 1849, antecedendo sua expulsão da França, acusado de instigar o levantamento de 1848, bem como a decretação de um novo imposto em 1850, taxando os jornais que publicassem folhetins” (MARTÍN-BARBERO, 1987, p. 191).

Para Martín-Barbero, “o caso Sue” ilustra como é importante se levar em conta, na análise do folhetim, a “leitura viva” da “massa do povo”, ao mesmo tempo “sujeito e objeto da leitura”. O teórico destaca ainda as “marcas de composição” do folhetim, que evidenciam o seu direcionamento para um leitor popular: tipografia de letras grandes e espacejadas, dirigidas para “um leitor ainda imerso no universo da cultura oral”; fragmentação narrativa em episódios, “que incorporava os cortes ‘produzidos’ por uma leitura não-especializada” e “que atendia às necessidades e possibilidades de leitura, semanal como o tempo de descanso e o recebimento do salário”; mecanismos de “sedução”, predispondo o leitor a interferir nos acontecimentos narrados com o envio de cartas; e, finalmente, o “suspense”, atiçando a curiosidade do leitor e o seu interesse pelo próximo episódio: 

O suspense introduz assim outro elemento de ruptura com o formato-romance, já que não terá um eixo, e sim vários, que o mantêm como narrativa instável, indefinível, interminável (...), faz[endo] da própria escritura o espaço de decolagem de uma narração popular, de um contar a. E a narração popular vive tanto da surpresa quanto da repetição. Situada entre o tempo do ciclo e o tempo de progresso linear, a periodicidade do episódio e sua estrutura medeiam, levantam uma ponte que permite alcançar o último sem deixar de todo o primeiro. (op. cit., p. 195) 

Diferentemente do folhetim francês, os folhetins brasileiros do século XIX, embora possam ter seguido os mesmos moldes de composição descritos por Martín-Barbero – uma vez que eram compostos e impressos em Paris –, não possuíam, porém, um público popular formado pelo operariado, como na França. Na sociedade brasileira oitocentista – um híbrido de “modernidade” e “atraso”, ao mesmo tempo burguesa e escravista, liberal e conservadora, capitalista e clientelista, como observa Roberto Schwarz (1990) –, a ausência de uma “massa de leitores” é flagrante. Além disso, no século XIX, “a cultura brasileira tornou-se em grande parte uma cultura ‘ornamental’, já que não existia (ou era excessivamente débil) o medium próprio da vida cultural: a sociedade civil” (COUTINHO, 2000, p. 52).

A Estação, por exemplo, folhetim em que foi publicada, no período de 15.06.1886 a 15.09.1891, a primeira versão do romance machadiano Quincas Borba, era “uma revista de modas, naturalmente destinada a proporcionar aos seus leitores apenas literatura amena e simples”, conforme observa a Comissão Machado de Assis, instituída pelo Ministério da Educação e Cultura em 1958 para o estabelecimento do texto definitivo das obras de Machado de Assis (in: ASSIS, 1977, p. 15). Com a publicação do Quincas Borba em suas páginas, “aquele quinzenário mundano passaria a trazer entre as suas seções habituais e recortes de bordados [um romance] que teve, assim, a sua primeira divulgação delimitada a um círculo de leitores, porventura muito aquém da sutileza de suas intenções” (op. cit., p. 15).

Circunscrito a um “círculo de leitores”, o folhetim, no Brasil, irá diferir do folhetim francês ainda pelos temas tratados e pelo tipo de linguagem empregada. Bem diversa do folhetim “água-com-açúcar” apresentado por Flaubert em Madame Bovary (Revue de Paris,1856), cujas heroínas exerciam sobre Ema Bovary o fascínio da sedução e do amor proibido, levando-a à ruína moral e financeira, a literatura folhetinesca da França do século XIX apresenta um aspecto marcadamente “sombrio”: 

Fazendo em pedaços a imagem do popular romântico-folclórico, o folhetim fala do popular-urbano: sujo e violento, o que geograficamente se estende desde o subúrbio até a penintenciária, passando pelos hospícios e as casas de prostituição. (...) Além de divórcios e adultérios, há incestos e abortos, mães solteiras e operárias seduzidas por patrões, dos quais se vingam cruel e fatalmente. Existe moralismo, mas também ligação entre a repressão sexual e as condições sociais de vida. O universo operário que aí aparece é o de um proletariado sem consciência de classe – mas quantos romances tinham, antes, tematizado esse universo de miséria, do medo e da luta pela sobrevivência? (MARTÍN-BARBERO, 1987, p. 199) 

Em 1838, chega pela primeira vez ao Brasil um folhetim francês, O capitão Paulo, de Alexandre Dumas, traduzido e publicado no Jornal do Commercio. No ano seguinte, embora ambientado em Portugal, se ocupando das desventuras amorosas de um jovem casal que vive sob a tirania do rei Dom Miguel, vem à luz o primeiro romance-folhetim brasileiro, O aniversário de Dom Miguel em 1828, de Pereira da Silva (SERRA, 1997, p. 31). A partir daí, os folhetins, no Brasil, passam a ser “importantes veículos de divulgação de novos escritores” (FARACO, 2000, p. 9), como Joaquim Manuel de Macedo. Oscilando entre o Romantismo e o Naturalismo, na segunda metade do século XIX, Aluísio Azevedo irá publicar em folhetins obras como Memórias de um condenado (A Gazetinha, 1882), Mistérios da Tijuca (A Gazetinha, 1882), Casa de Pensão (Folha Nova, 1883), Filomena Borges (Gazeta de Notícias, 1884), A mortalha de Alzira (Gazeta de Notícias, 1884), e torna-se, segundo Faraco, “o primeiro romancista de massas da literatura brasileira”23 (FARACO, 2000, p. 9).

Neste espaço literário dominado pelo folhetim, teve lugar ainda a publicação das Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida (A partilha, 1853-1854). Surgindo como “a voz de exceção” do Romantismo brasileiro, a narrativa das Memórias, ambientada no Rio de Janeiro “do tempo do Rei”, é de difícil filiação estética, dividindo os seus estudiosos entre a filiação ao realismo ou à tradição picaresca espanhola (CÂNDIDO, 1978, p. 318).24 Para Antônio Cândido, elas possuem afinidade com a produção cômica e satírica que vigorou durante os primeiros anos do Segundo Reinado no Brasil, “e que apareceria ainda, modestamente, na obra novelística e teatral de Joaquim Manuel de Macedo, cheia de infrarrealismo e caricatura” (op. cit., p. 325).

Apresentando personagens que transitam num universo social bem delimitado, representado, num extremo, pelo “meirinho” Leonardo Pataca, e, no outro, pelos “desembargadores”, a narrativa das Memórias, de caráter circular, se desenvolverá numa atmosfera de “demanda judicial”. Iniciando-se com Leonardo Pataca já velho, gordo e lento, que “jamais saía da esquina”, pois não lhe eram mais dadas demandas, e fechando-se, após idas e vindas, com o casamento de Leonardo (filho) e Luisinha, o aspecto circular da narrativa é denotado ainda pela presença de uma espécie de “círculo das Marias” – composto pela Maria “saloia”, Dona Maria rica, Maria-Regalada, e, talvez, a Comadre, não nomeada na história –, além dos dois Leonardos: 

Daqui em diante trataremos o nosso memorando pelo seu nome de batismo: não nos ocorre se já dissemos que ele tinha o nome do pai, mas se não o dissemos, fique agora dito. E para que se possa saber quando falamos do pai e quando do filho, daremos a este o nome de Leonardo, e acrescentaremos o apelido de Pataca, já muito vulgarizado nesse tempo, quando quisermos tratar daquele. (ALMEIDA, 1963, p. 88) 

Leonardo e Leonardo Pataca, fechando o “círculo dos meirinhos”, protagonizam “demandas”, que caracterizam e são, ao mesmo tempo, a razão de ser da narrativa. Tais demandas tomam a feição de verdadeiras peças judiciais, em que entram “advogados” e “procuradores”. Enquanto a madrinha de Leonardo é a sua “advogada”, na “causa” do casamento entre ele e Luisinha, o mestre-de-reza da casa de Dona Maria – personagem que, não aleatoriamente, “tem gosto por demandas judiciais” – é o procurador de José Manuel, o outro pretendente à mão de Luisinha: “Por uma singularidade, assim como Leonardo tinha achado na comadre uma protetora à sua causa, também José Manuel achou um procurador para a sua” (op. cit., p. 124).

As aventuras – ou “demandas” – narradas são, afinal de contas, vividas por todos, e não apenas por Leonardo Pataca ou Leonardo filho, este último tão “memorando” quanto “futuro clérigo”, ou seja, nem uma coisa nem outra. Como observa Antônio Cândido, o livro é contado na terceira pessoa por um narrador “que não se identifica e varia com desenvoltura o ângulo secundário – trazendo-o de Leonardo Pai a Leonardo Filho, deste ao Compadre ou à Comadre, depois à Cigana e assim por diante (...). Sob este aspecto, o herói é um personagem como os outros, apesar de preferencial” (CÂNDIDO, 1978, p. 319).

As aventuras das Memórias terminariam, para Mário de Andrade, quando “o inútil da felicidade cinzenta e neutra principia” (ANDRADE, in ALMEIDA, 1963), com o casamento de Luisinha e Leonardo – “o primeiro grande malandro que entra na novelística brasileira” (CÂNDIDO, 1978, p. 322). No entanto, considerando o caráter de “demanda” do livro, as aventuras narradas terminariam quando as demandas da “gente alegre” (Cândido) acabam, fechando o círculo aberto no início do livro: “A velhice tinha-o tornado [Leonardo Pataca] moleirão e pachorrento, com sua vagareza atrasava o negócio das partes; não o procuravam, e por isso jamais saía da esquina” (ALMEIDA, 1963, p. 5).

Na perfeita mescla de sátira e caricatura das Memórias – em que se evita “o caráter acessório de anedota, o desmando banal da fantasia e a pretensiosa afetação, que comprometem a maior parte da ficção brasileira daquele tempo” (CÂNDIDO, 1978, p. 337) –, a sociedade carioca “do tempo do Rei” é vista como um “arremedo” das terras de além-mar: 

Este uso da mantilha era um arremedo do uso espanhol; porém a mantilha espanhola, temos ouvido dizer, é uma coisa poética que reveste as mulheres de um certo mistério, e que lhes realça a beleza; a mantilha das nossas mulheres, não; era a coisa mais prosaica que se pode imaginar, especialmente quando as que a traziam eram baixas e gordas como a comadre. A mais brilhante festa religiosa (...) tomava um aspecto lúgubre logo que a igreja se enchia daqueles vultos negros, que se uniam uns aos outros, que se inclinavam cochichando a cada momento. / Mas a mantilha era o traje mais conveniente aos costumes da época; sendo as ações dos outros o principal cuidado de quase todos, era muito necessário ver sem ser visto. A mantilha para as mulheres estava na razão das rótulas para as casas; eram o observatório da vida alheia. (ALMEIDA, 1963, p. 33) 

As Memórias de um sargento de milícias seriam, ainda, um exemplo de narrativa literária cuja composição está subordinada, assim como a notícia, à “lógica do acontecimento”. Para Antônio Cândido, o romance “apresenta uma coleção de cenas e acontecimentos (...), uma sequência de situações sem precedência cronológica necessária, e cuja precária unidade é garantida pela pessoa de Leonardo” (CÂNDIDO, 1971, p. 218), evidenciando assim um diálogo da literatura com a linguagem jornalística, de cujo entrecruzamento o folhetim é um resultado concreto. 

 

3.4 – Imprensa e literatura na Belle Époque brasileira

 

Se o século XIX brasileiro, no rastro da independência política de Portugal em 1822, se caracteriza pela busca de uma nacionalidade especificamente brasileira tanto para o país quanto para a sua emergente literatura, conforme o projeto empreendido pelos românticos, o Brasil da virada do século XIX e das primeiras décadas do século XX possui demandas diferentes. Enquanto na sociedade brasileira oitocentista vigorava claro desnível entre a ideologia liberal importada da Europa e a realidade imediata, de cunho acanhado e resquícios coloniais – baseada sobretudo no modo de produção escravista, como chama a atenção Carlos Nelson Coutinho (2000, p. 43) –, o período compreendido entre 1890 e 1920 terá a missão de “passar o Brasil a limpo”, com a tentativa de apagamento dos vestígios coloniais e a inserção do país numa onda avassaladora de modernização. Esse processo se tornará visível sobretudo no Rio de Janeiro, quando da passagem deste da condição de Corte para a nova condição política de Capital Federal da República.

Desde a proclamação da República em 1889, o Brasil já vinha alterando a sua fisionomia colonial, com a ampliação da rede ferroviária, o uso cada vez maior da eletricidade e o número crescente de automóveis, conforme observa Flora Süssekind (1987, p. 29). No entanto, será durante as duas primeiras décadas do século XX (os anos da Belle Époque brasileira) que se dará a inserção (forçada) do Brasil na modernidade – inserção esta feita à custa do sacrifício social das camadas populares, alijadas do projeto modernizante da capital do país (SEVCENKO, 1985). 

O Rio de Janeiro de então, tornado “vitrine” da modernidade brasileira, dada a sua condição de “Capital Federal”, é alvo de drásticas reformas urbanas e sanitárias. Estas últimas tinham à frente as figuras de Oswaldo Cruz, Adolfo Lutz e Vital Brasil, que seguiam os preceitos de higienização implantados na França por Pasteur, Émile Roux e Adrien Proust, os grandes nomes europeus da higienização pública. Ao mesmo tempo em que “soterra” definitivamente o passado colonial, no “bota abaixo” do casario barroco, que cede lugar às amplas avenidas e prédios art nouveau, a reforma urbanística e a higienização das primeiras décadas do século XX na capital do país são acompanhadas de uma avalanche de novas técnicas de registro sonoro, de impressão e reprodução de textos, desenhos e fotos, e pela difusão da fotografia, da telefonia, do cinematógrafo e do fonógrafo, tornando-se, para Flora Süssekind, “um momento privilegiado para se analisar um estreitamento de contatos entre literatura e media” (SÜSSEKIND, 1987, p. 26). 

Observe-se, porém, que tal “modernização de fachada”, em lugar de trazer benefícios reais para o país, tão somente aprofunda a dualidade entre o “Brasil do litoral” e o “Brasil do interior”, entre o “Brasil moderno” e o “Brasil arcaico”. Enquanto, na Capital Federal das primeiras décadas do século XX, a paisagem passa a ser dominada pelos modernos prédios de arquitetura “afrancesada”, no restante do país, sobretudo no interior, há o predomínio da feição colonial e a presença do latifúndio, denunciando a permanência de um passado oligárquico.

A pretensa “modernização” brasileira, vista por Nicolau Sevcenko como o “divórcio profundo no seio da sociedade brasileira entre os grupos tradicionais e a burguesia citadina, cosmopolita e progressista” (SEVCENKO, 1985, p. 35), intolerante para com a cultura popular, é acompanhada não somente da expulsão das camadas populares da “capital do arrivismo”, mas também de constantes incêndios. Segundo Flora Süssekind, tais incêndios eram provocados por “problemas de funcionamento” dos aparelhos técnicos recém-introduzidos, e pela insuficiência dos artefatos industriais, dada a carência de energia elétrica, de um lado, e as instalações precárias, de outro:  

Problemas de funcionamento, acompanhados, no entanto, de um crescente interesse pelos aparelhos modernos de produção e reprodução de imagens. Interesse que se duplicaria na percepção do mundo como imagem e da imagem como “coisa concreta” a mais numa paisagem que se procurava modernizar com rapidez. (SUSSEKIND, 1987, p. 106)

A modernização do Rio de Janeiro – com o “embelezamento” e a higienização da cidade concomitantes à introdução do novo aparato técnico –, formando um contraponto com os grupos tradicionalistas rurais, acirra ainda o descontentamento popular, do qual as revoltas da vacina e dos sapatos são exemplos contundentes. Como observa Antônia Cristina A. Pires (1995), a “revolta da vacina”, em 1904, constituiu “um movimento popular ocorrido quando o governo recorreu às armas para realizar a vacinação contra a febre amarela” (PIRES, 1995, p. 85), enquanto, dois anos depois, a “revolta dos sapatos”, segundo a pesquisadora, 

teve como detonador um decreto da Câmara Municipal, o qual instituía o uso obrigatório de sapatos (sob pena de prisão e multa) a todos os trabalhadores que circulassem pelo centro da cidade. Ocorre que os sapatos eram acessórios caros e os trabalhadores andavam descalços ou de tamancos. Indignados, os diretamente atingidos pelo decreto foram às ruas protestar. Como na “revolta da vacina”, os protestos acabaram em confronto com o aparelho repressor, prisões e mortes. (op. cit., p. 120)

Contudo, é precisamente durante os anos da Belle Époque, marcados por tantas contradições, que se observará grande desenvolvimento da imprensa no Brasil. Enquanto na época colonial a imprensa no Brasil era inexistente, devido à proibição imposta por Portugal (somente em 1808, com a vinda da Corte portuguesa para o Brasil, foi instalada uma tipografia completa), nos anos da Belle Époque foram lançados inúmeros jornais, como A Noite e O imparcial, em 1912, Diário da Noite e O Jornal, em 1919 – esses últimos de Assis Chateaubriand, que viria a consolidar uma cadeia de jornais –, além de jornais voltados para o humor e a sátira política, como Careta (1908). Havia também grande número de jornais de cunho político, que floresceram sob a influência dos imigrantes europeus, como A Terra Livre (1906) e A Peble (1917). Além disso, foi fundada por Gustavo de Lacerda, em 1908, como evento de grande importância, a Associação Brasileira de Imprensa.    

Ao mesmo tempo em que exerce uma inquestionável hegemonia na vida intelectual brasileira oitocentista e das primeiras décadas do século XX, a imprensa também promove uma divisão entre os escritores do período. De um lado, estariam os que aderiram a ela sem qualquer preconceito, como Olegário Mariano e Afrânio Peixoto, “os mais consagrados homens de Letras do tempo” (PIRES, 1995, p. 252), com produções literárias massificantes e eivadas de clichês, conformes à forja do conceito de “boa literatura”, segundo o qual a literatura deve ser “o sorriso da sociedade”, na expressão de Afrânio Peixoto. Do outro lado, há os que criticam duramente a imprensa, como Lima Barreto, que chega mesmo a considerá-la, em Recordações do escrivão Isaías Caminha, como o “quarto poder”. Também em A conquista, de Coelho Neto, a imprensa carioca é vista sob uma ótica implacável: 

— Eu? Não trabalho em jornais. Considero a imprensa uma indústria intelectual. Entra a gente para o jornalismo com um bando de ideias originais e retalha-as para o varejo do dia-a-dia. [...] O jornalismo está para a arte como um desses anjos bojudos de cemitérios estão para o Laocoonte. (COELHO NETO, A Conquista – apud LAJOLO E ZILBERMAN, 1999, p. 83). 

Ao contrário de Nicolau Sevcenko, que considera a “oratória do período” e a poesia parnasiana da Belle Époque como elementos culturais de adesão ao projeto autoritário de modernização do país, Flora Süssekind vê o “espanto ornamental” da literatura de Olavo Bilac – eleito o “príncipe dos poetas brasileiros” pela revista Fon-Fon em 1913 – como um modo de resistência às novas formas de comunicação que se estabeleciam. A “superornamentação” de Bilac funcionaria, desse ponto de vista, para delimitar – e opor – o “artístico” ao “jornalístico”: “(...) recurso enviesado, a opção pelo ‘falar bonito’, que, reeditando na crônica sua dicção parnasiana, se oporia ao coloquialismo das reportagens e do noticiário” (SÜSSEKIND, 1987, p. 77). Do mesmo modo, Coelho Neto, visto por Nicolau Sevcenko como modelo paradigmático, ao lado de Afrânio Peixoto e Olegário Mariano, da literatura massificante do período, buscaria, na percepção de Flora Süssekind, se opor à padronização do jornal, “num contraste de inflexão e vocabulário com relação à simplificação e à imagem de ‘objetividade’ características da linguagem jornalística” (op. cit., p. 76).

Enquanto para Nicolau Sevcenko escritores como Euclides da Cunha e Lima Barreto, ao lado dos simbolistas, se contrapunham ao modo de produção massificante da literatura dominante no período, Flora Süssekind percebe, em “grande parte da obra de Coelho Neto” e de Olavo Bilac, formas sistemáticas de oposição à “padronização industrial” do campo da cultura no Brasil do início do século XX. No entanto, “se Bilac procurou desenvolver marcas estilísticas resistentes às novas formas de comunicação, que se mostravam, na prática, incapazes de tensioná-las, não deixava de encampar a profissionalização via imprensa” (SÜSSEKIND, 1987, p. 84).

Outras formas de oposição à “literatura massificante”, levantadas pela pesquisadora, seriam os “interiores penumbristas” que proliferaram na poesia intimista de Ribeiro Couto, Guilherme de Almeida e Mário Pederneiras, nos anos 1910-20. Na visão de Flora, o penumbrismo, “lugar intermediário que funciona como filtro capaz de domesticar experiências de choque e automatizar os sustos provocados pela modernização” (op. cit., p. 119), comporia uma “terceira paisagem” entre a paisagem natural e a paisagem técnica em formação.

A Belle Époque brasileira surge assim como uma época de profundas contradições. Ao mesmo tempo em que apresenta grande desenvolvimento da imprensa e busca de uma “feição moderna” para o país, ocorre também o alijamento das camadas populares desse “progressismo”, acompanhado, como observa Nicolau Sevcenko, de uma “decadência cultural” e um “definhamento da literatura”. Euclides da Cunha e Lima Barreto seriam, para Sevcenko, as “vozes de exceção” do período de literatura massificante: embora divergentes entre si, ambos se opunham à “degeneração cultural que invadiu a República, sobretudo [a]os efeitos do jornalismo sobre as consciências e a literatura. O processo de decadência intelectual e de ‘glorificação das mediocridades’ foi acompanhado com dissabor pelos dois escritores” (SEVCENKO, 1985, p. 126).

O período de florescência da imprensa no Brasil é, também, a época de introdução da máquina de escrever manual, que surge, para Flora Süssekind, como “imagem paradigmática do misto de atração e temor e das hesitações dos escritores brasileiros na virada do século XX, frente ao horizonte técnico que então se constituía” (SÜSSEKIND, 1987, p. 146). Este artefato técnico viria a se tornar, depois, “marca registrada” da produção ficcional de alguns escritores, como Nelson Rodrigues, por exemplo. Porém, mais do que se constituir em mais uma inovação técnica da Belle Époque brasileira, capaz de realizar a mediação entre o ato de escrever e a sensibilidade literária, e tornar-se um meio que “afeta tanto a consciência de autores e leitores quanto as formas e representação literárias propriamente ditas” (op. cit., p. 26), a máquina de escrever torna-se artefato técnico comum a escritores e jornalistas – tal como o computador, no mundo atual –, aproximando e distanciando, a um só tempo, técnica literária e técnica jornalística, narrativa ficcional e crônica de jornal.


CAPÍTULO 4

LITERATURA  VERSUS JORNALISMO: “DISPUTA DISCURSIVA” CONTEMPORÂNEA?

Por mais que possamos apreciar as histórias de ficção pelas verdades que revelam, apreciamo-las ainda mais pelas mentiras que contam. (Peter Gay, in O estilo na história, p. 175)

O pleno estabelecimento do discurso jornalístico, com o “jornal-empresa” europeu do século XIX, dá origem a uma noção de razão que em tudo irá diferir do conceito estabelecido por Kant no século XVIII. Realizando uma revisão da razão kantiana, que postula a existência de uma “razão subjetiva, autônoma, capaz de conhecer o mundo e de dirigir o destino dos homens e da humanidade” (FREITAG, 1986, p. 59), e retomando o ponto de vista de Max Weber – cujas análises do Iluminismo, da racionalidade e do progresso “permanecem relevantes para nós até hoje” (McCARTHY, in: HABERMAS, 1983-5, p. xvii) – o teórico Jürgen Habermas, herdeiro da Escola de Frankfurt, em sua Teoria da Ação Comunicativa, de 1981, considera que essa “racionalização”, no mundo contemporâneo, teria dado origem a dois tipos distintos de racionalidade: a “razão comunicativa” e a “razão instrumental”. Possuindo como único ponto comum o distanciamento da esfera religiosa da sociedade, essas “razões” contemporâneas são, porém, em sua essência, de acordo com Habermas, radicalmente diferentes. Enquanto a primeira remete àquilo que o teórico, apropriando-se do conceito husserliano, define como Lebenswelt, ou seja, o “mundo vivido” das ideias e da cultura, a segunda remeteria a uma espécie de “razão técnica”, inteiramente instrumentalizada e voltada para fins pragmáticos.

Estudiosa da Teoria Crítica do Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt, ou Escola de Frankfurt, Barbara Freitag observa que, para Habermas, a modernidade criou um hiato entre o “mundo vivido” e o mundo sistêmico, que estariam em choque permanente: 

O mundo vivido, regido pela razão comunicativa, está ameaçado em sua sobrevivência pela interferência da razão instrumental. (...) Segundo Habermas, cabe à razão comunicativa, preservada em certos “nichos” da sociedade moderna e institucionalizada em algumas de suas “esferas de valor” (Weber), isto é, no mundo vivido (como é o caso na esfera da pintura, da música, do direito, da ciência e da moral), resgatar o terreno perdido e reorientar a razão instrumental, reconduzindo-a aos limites dentro dos quais é imprescindível e pode fornecer uma contribuição inestimável para assegurar a organização e a sobrevivência das modernas sociedades de massa. (FREITAG, 1986, p. 62) 

Para a superação do impasse entre o mundo vivido e o mundo sistêmico, e dando continuidade ao programa original desenvolvido pela Teoria Crítica desde os anos de 1930, Habermas propõe uma forma de pesquisa social crítica integrada à filosofia e às várias ciências humanas, num “materialismo interdisciplinar”. Para ele, uma adequada teoria da sociedade será desenvolvida mediante a combinação do “filosófico” com o “científico”, numa cooperação entre análise conceitual e análise empírica (McCARTHY, in: HABERMAS, 1983-5, p. xvi).

De acordo com Habermas, não apenas a esfera da cultura, incluindo a literatura, as obras de arte, a ciência e a filosofia, estaria inserida no âmbito do “mundo vivido”, ou Lebenswelt – conceito introduzido como complemento necessário ao conceito de ação comunicativa desenvolvido pelo teórico, conforme observa Thomas McCarthy, em introdução à Teoria da Ação Comunicativa. Também ordens institucionais e estruturas da personalidade podem ser vistos como componentes básicos do Lebenswelt. Por outro lado, a esfera material da sociedade, governada pela técnica da reprodução e da massificação, teria como fundamento a “razão instrumental”, ou funktionalistischen vernunft, inserindo-se assim na esfera do “sistema”. Deste ponto de vista, História e Literatura não poderiam mais ser considerados, na contemporaneidade, com a atuação intensificada dos meios de comunicação de massa, “discursos em disputa”, pois que ambos estariam igualmente inseridos no “mundo vivido” das ideias. O novo campo de disputa discursiva se configuraria, a partir de uma lógica habermasiana, entre a História e a Literatura, de um lado, e, de outro, o jornalismo, inscrito na “lógica da notícia”.

O debate em torno da nova “disputa discursiva” que teve lugar, no século XIX, entre História e Literatura, fundamentado na antiga dicotomia entre a “lógica da unidade” e a “lógica da dispersão”, passa a ser substituído por uma discussão, mais próxima das noções habermasianas de “razão instrumental” e “razão comunicativa”, sobre as relações entre literatura e jornalismo na contemporaneidade. Flora Süssekind, por exemplo, aponta um “duelo” entre “crítico-scholar” e “crítico-jornalista”, do qual este último, favorecido por uma “criticofobia generalizada” à figura do crítico teórico, sairia beneficiado, com “a ampliação do número de matérias à beira do release promocional e a significativa redução do espaço para a reflexão crítica na imprensa” (SÜSSEKIND, 1993, p. 32). Para Luiz Costa Lima, por seu turno, 

[há uma] polêmica, não só brasileira, entre crítica de jornal e crítica universitária. (...) Confunde-se a crítica de jornal com a respeitadora da linguagem comum, ao passo que a universitária disfarçaria, sob uma arrogância empolada, seu blablablá de inutilidades. Esquece-se que, sob o resguardo da linguagem comum, na maioria das vezes se respeitam o amadorismo, a preguiça mental e, notadamente, a necessidade de vender o produto ao maior número possível de consumidores. Por outro lado, os autores acadêmicos simetricamente esquecem que as terminologias especializadas só se impõem quando não há forma mais precisa de escrever. (LIMA, 1980, p. 102)

Também Isabel Travancas, estudando os suplementos literários de dois jornais brasileiros e dois franceses, e analisando o tratamento dado por eles aos livros, conclui que os suplementos literários, na contemporaneidade, “não são mais um espaço de crítica literária, mas um lugar predominantemente jornalístico com contribuições mais ou menos frequentes dos acadêmicos” (TRAVANCAS, 2001, p. 16). Dessa forma, a crítica literária, que no século XIX ocupava um grande espaço nos suplementos dos jornais, passa a ter a sua área de atuação restrita ao âmbito acadêmico ou às publicações especializadas. Para Travancas, “apesar da presença expressiva de intelectuais de fora da imprensa nas páginas dos quatro jornais, a grande maioria das resenhas, artigos e reportagens é assinada por jornalistas da redação dos cadernos” (op. cit., p. 41). Observe-se que as resenhas dos livros feitas por jornalistas seguem um molde propriamente jornalístico, caracterizado pela ausência de qualquer juízo pertinente ao âmbito dos estudos literários, e direcionado, em última instância, para a divulgação pura e simples da obra.

O “pacto” (Lajolo e Zilberman) brasileiro entre o jornalismo e a literatura, que teve lugar no passado, notadamente na época dos folhetins, passaria a ser substituído assim, de acordo com tal ponto de vista, por uma “disputa” entre os campos da “razão instrumental” e da “razão comunicativa”, conforme os conceitos habermasianos.[Os suplementos literários] estão mergulhados em uma lógica jornalística, que define os cadernos a partir do conceito de notícia. Os livros tratados são os livros recém-lançados e este é o primeiro critério de seleção” (ibid., p. 16).

A “disputa”, ou “duelo”, entre a “razão instrumental” do jornalismo e a “razão comunicativa” da literatura tornar-se-ia evidente ainda quando os jornalistas, “profissionais da informação”, tornam-se também escritores. Assim, os “jornalistas literatos”25 (BOURDIEU, 1996, p. 67), passam, na atualidade, a inverter a relação entre jornalismo e literatura do Brasil do século XIX, quando os escritores viam-se compelidos a exercer o jornalismo como modo de escoar a sua produção literária.

Mesmo quando a relação entre literatura e jornalismo é vista como uma proximidade de universos semelhantes, que possuem a mesma “visão de mundo”, e auto-intitulam-se “campos de intelectuais”, submetidos às “regras da escrita” (TRAVANCAS, 2001), tal aproximação é, contudo, feita a partir de uma “ótica jornalística”. Desse ponto de vista, a imprensa, inserida na “grande indústria”, teria a obrigação de “proteger” a literatura, espécie de “parenta pobre”: 

O jornalista Rinaldo Gama, ex-editor de livros da Veja, chega a comparar a área literária com a de televisão – o outro setor que possui caderno especial nos grandes jornais – em termos de mercado, de movimentação de dinheiro e de pessoas empregadas, e a disparidade é enorme. A seu ver, tal fato ocorre porque a imprensa escrita [sic] se sente “irmã” da literatura e se vê obrigada a lhe dar espaço, a lhe proteger. (op. cit., p. 143) 

Observe-se ainda que essa “lógica jornalística” se funda na “informação”, tomada como “instrumento”. Como explicita o redator do jornal francês Le Monde, “[o suplemento literário] Le Monde des Livres é antes de tudo Le Monde. Isto é, um instrumento de informação” (citado por TRAVANCAS, 2001, p. 33). Tal ponto de vista deixaria clara a separação entre uma razão essencialmente “instrumentalizada” e uma razão que encontraria seu fundamento numa lógica não instrumental, mas, antes, dialogativa, argumentativa – ou seja, propriamente “comunicativa” – que pressupõe, sobretudo, o diálogo e o debate entre os atores.

No entanto, se, de um lado, literatura, História e jornalismo se afiguram campos discursivos separados e até mesmo em “disputa”, evidencia-se, por outro lado, um “entrelaçamento” entre eles. Se estudiosos como Hayden White (1970) e Peter Gay (1974) ressaltam o caráter “literário” das narrativas históricas, em contrapartida, há os que percebem a presença da História no interior do texto literário. Terezinha Barbieri detecta, na literatura das últimas décadas no Brasil do século XX, um “diálogo com a História” em obras como Boca do inferno, de Ana Miranda (1989), A casca da serpente, de José J. Veiga (1989), e Agosto, de Rubem Fonseca (1990), reconhecendo nelas uma continuidade da “tradição machadiana” – presente em obras como Quincas Borba e Esaú e Jacó – de “conceber universos ficcionais na confluência de fatos reais com fatos imaginários” (BARBIERI, 1996, p. 108). Ou seja, uma tradição cuja proposta seria precisamente o entrelaçamento dos campos da História e da Literatura, que não seriam, deste modo, “discursos em disputa”.

Na medida em que a “lógica da notícia” se baseia numa “construção referencial” que obedece a um “ordenamento” de fatos segundo o ponto de vista do interesse, e não de acordo com sua sequência temporal (LAGE, 1987, p. 25), o jornalismo também estaria próximo da construção narrativa do discurso historiográfico. Para Hayden White, os registros dos acontecimentos e a interpretação deles pelos historiadores não se constituem, por si sós, em História, mas são, apenas, “elementos de estória”, que podem ser convertidos em História, subordinados à perspectiva do próprio historiador (WHITE, 1994, p. 100). Desta forma, o historiador – assim como o jornalista na construção da notícia –, ao suprimir ou realçar acontecimentos, estabelecer subordinação entre eles, ou caracterizá-los segundo o seu ponto de vista pessoal, estaria lançando mão de técnicas literárias semelhantes à “urdidura de enredo” (White) de uma peça ou romance. A consequência disto é que o registro histórico é “sempre incompleto”, e a História passa a ser “escrita” e “lida” a partir de “categorias literárias” como romance, tragédia, comédia, epopéia, sátira, etc.: 

Nenhum acontecimento histórico é intrinsecamente trágico; só pode ser percebido como tal de um ponto de vista particular ou de dentro do contexto de um conjunto estruturado de eventos do qual ele é um elemento que goza de um lugar privilegiado. Pois na história o que é trágico de uma perspectiva é cômico de outra, exatamente da mesma forma que na sociedade o que parece trágico do ponto de vista de uma classe pode ser, como Marx pretendeu demonstrar com O 18 Brumário de Luís Bonaparte, apenas uma farsa do ponto de vista de outra classe. (op. cit., p. 100-1) 

O diálogo entre os campos discursivos do jornalismo e da literatura e a reciprocidade entre eles se revela crucial para a formulação do conceito de “narrador pós-moderno”, de Silviano Santiago. Segundo tal conceito, “o narrador pós-moderno é aquele que quer extrair a si da ação narrada, em atitude semelhante à de um repórter ou de um espectador” (SANTIAGO, 1989, p. 39). O autor vê, nos contos “Sangue na praça”, “Azeitona e vinho” e “A lugar algum”, de Edilberto Coutinho, considerados por ele como “modelos exemplares” de narrativas “pós-modernas”, não o relato de uma experiência, como ocorria nas narrativas clássicas de Leskov analisadas por Walter Benjamin, mas a transmissão de uma sabedoria que não resulta da própria vivência do narrador, e sim “da observação de uma vivência alheia a ele, visto que a ação que narra não foi tecida na substância viva da sua existência” (op. cit., p. 40). Assim, de acordo com esse ponto de vista, a ficção pós-moderna se tornaria “ponte” entre a incomunicabilidade de experiências entre narrador e personagem, definidas a partir do olhar. O narrador pós-moderno é, para Silviano Santiago, “aquele que olha”: 

No conto “A lugar algum”, transcrição ipsis litteris do script de um programa de televisão, em que é entrevistado um jovem marginal, a realidade concreta do narrador é grau zero. Subtraiu-se totalmente. O narrador é todos e qualquer um diante de um aparelho de televisão. Essa também –  repitamos – é a condição do leitor, pois qualquer texto é para todos e qualquer um. / Em  “A lugar algum”, o narrador é apenas aquele que reproduz. As coisas se passam como se o narrador estivesse apertando o botão do canal de televisão para o leitor. Eu estou olhando, olhe você também para este programa e não outro. (SANTIAGO, 1989, p. 51-2) 

Por outro lado, embora Flora Süssekind reconheça um “duelo” entre a “crítica-jornalística” e a “crítica acadêmica”, na década de 1980, “o crescimento editorial, ao contrário do que seria de esperar, se desestimula uma reflexão crítica mais atenta (já que o interesse primordial é vender livros, não analisá-los), estimula, por sua vez, nova ampliação do espaço para a literatura no Brasil” (SÜSSEKIND, 1993, p. 32) – mesmo que este espaço seja dedicado à resenha e à notícia, isto é, ao tratamento sobretudo comercial do livro. A autora também reconhece que “da tensão entre o crítico-jornalista e o crítico-scholar se originou o perfil do crítico moderno no Brasil” (op. cit., p. 31) – o crítico-ensaísta, que se caracteriza pelo abandono do “arremedo de cientificidade das teses-tratados” (ibid., p. 31).

Deixando de lado – ou “suspendendo”, à maneira cética – a especulação sobre possíveis “duelos” ou “disputas discursivas” entre Literatura, História e jornalismo, o que pode ser observado, na contemporaneidade, é a utilização comum por esses três campos discursivos de técnicas de construção narrativa, o que provoca uma aproximação entre eles. Além disso, torna-se evidente um efetivo avanço do campo dominado pelos media – o campo da razão instrumental, segundo Habermas –, do qual o jornalismo seria o representante por excelência. De tal avanço, nem mesmo a teoria literária escaparia, quer seja pela crítica ao jornalismo, evidenciada nas observações de Luiz Costa Lima e Flora Süssekind, ou na apropriação daquele campo para a formulação de conceitos, como se pode perceber no conceito de narrador pós-moderno de Silviano Santiago. Observe-se ainda que tal conceito, estabelecido mediante a noção de “informação” – termo típico do discurso jornalístico –, leva ainda à questão da contaminação recíproca, que implica um intercâmbio semiótico, dos campos discursivos considerados: “é discutível falar de autenticidade da experiência e do relato porque o que se transmite [na narrativa pós moderna] é uma informação obtida a partir da observação de um terceiro” (SANTIAGO, 1989, p. 38, não grifado no original). 

 

4.1 – O ceticismo nas relações entre literatura, História e jornalismo

 

Na análise das relações entre literatura, História e jornalismo, a adoção do ceticismo como método se afigura muito produtiva, uma vez que oferece a possibilidade de “suspensão do juízo” sobre tais discursos, que podem ser encarados assim sem quaisquer apriorismos. A corrente filosófica cética, que se caracteriza “por fazer uso da faculdade de duvidar” (GAI, 1997, p. 13), fundada na Grécia Antiga por Pirro, na virada dos séculos IV para o III a. C., se manteve, desde então, como uma “concepção de mundo alternativa, jamais dominante” (op. cit., p. 22). No entanto, essa Weltanschauung efetivamente sobreviveu ao longo do tempo, atravessando épocas diversas e colocando-se acima delas. Tal peculiaridade se deveria ao seu caráter de “visão de mundo”, ou seja, “uma forma de compreender o mundo e, portanto, os princípios sobre os quais se fundamenta indiciam um posicionamento que jamais fornece uma ideia acabada a respeito do objeto em questão, seja ela afirmativa ou negativa” (ibid., p. 10).

O caráter de concepção de mundo da corrente cética da filosofia pode ser depreendido do comportamento do seu fundador, aquele que “se apropriou do ceticismo de maneira mais pessoal e mais manifesta do que seus predecessores” (GAI, 1997, p. 13). Conforme a lenda existente entre os estudiosos, Pirro deixava-se atropelar por carroças, ser mordido por cães e, como se não bastasse, continuava a falar, sozinho, ao se ver abandonado pelos ouvintes, colocando em prática, deste modo, os “princípios céticos” de suspensão da crença e de suspeita sobre os sentidos. Assim, como observa Gustavo Bernardo (2000, p. 136), “a filosofia de Pirro nos chegou através dos seus gestos, do seu exemplo, mais do que dos seus escritos”, num autêntico apostolado cético.

Como um discurso que parece ter-se mantido alheio à “disputa” grega pela hegemonia da palavra, o ceticismo, no entanto, foi apropriado por diversos pensadores, por diferentes motivos e em contextos vários, ao longo dos séculos. De acordo com Maria Cristina Franco Ferraz, Sexto Empírico teria se apropriado, nos séculos II e III, das teses sofistas de Górgias, contidas no Tratado do não-ser. Segundo ela, e conforme um ponto de vista defendido também por Barbara Cassin, as teses de Górgias seriam um “astucioso uso da paródia”, cujo alvo era a ontologia parmenideana: “Sexto Empírico apropriou o Tratado do não-ser para o ceticismo, utilizando-se do texto de Górgias – evidentemente não lido como paródia, como texto sobre texto, mas como um tratado autônomo, instaurador de um sentido primeiro –, para ilustrar a inexistência e a impossibilidade de um critério de verdade” (FERRAZ, 1999, p. 16).

No final do século XIII e inícios do XIV – portanto, mais de um milênio depois de Sexto Empírico –, a apropriação do ceticismo pelo frade franciscano Guilherme de Occam, em Londres, contribui para uma nova visão religiosa. Para a filosofia nominalista de Occam, “não se deve multiplicar os entes existentes além do necessário” (BERNARDO, 2000, p. 141), sendo que o Deus criador, nessa visão, possui onipotência gratuita e arbitrária, enquanto, de outro lado, e como consequência, “toda regra moral só pode existir como termo da linguagem” (op. cit., p. 142). Pelas suas ideias, Occam foi considerado herege. No entanto, de acordo com Gustavo Bernardo, a sua intenção era, ao contrário, estabelecer uma “filosofia da crença”, calcada no reconhecimento da contingência do mundo criado, contribuindo ainda para uma renovação da fé cristã.

À atuação de Occam, soma-se a de autores renascentistas, como Montaigne e Cervantes, que, juntamente com a perspectiva antropocêntrica do Humanismo, contribui para a substituição da visão de mundo teocêntrica imposta pela Igreja medieval e seus mecanismos de poder, num mundo não mais dominado pela intolerância religiosa, mas pela ratio.

Embora o ceticismo faça largo uso da ironia, como evidenciado, por exemplo, nas obras de Montaigne e Cervantes, este recurso da língua não é, de modo algum, uma exclusividade do pensamento cético. Para Maria Cristina Ferraz, uma “sobrecarga” de ironia se acha presente até mesmo na ontologia platônica, especificamente em Íon, texto de Platão, no qual Sócrates, utilizando “ardilosos” e irônicos elogios, dialoga com o rapsodo26 Íon a fim de, segundo o ponto de vista de Maria Cristina, desqualificar o discurso mimético, atingindo não a figura do rapsodo, mas o próprio poeta (FERRAZ, 1999, p. 33 e seguintes). Também os estudos organizados por Lélia Parreira Duarte detectam o uso da ironia em autores tão díspares como Thomas Mann, James Joyce, Lima Barreto e Ana Cristina César, e até mesmo no jornalismo, discurso que se pretende “objetivo” (DUARTE, 1994). De acordo com Antônia Cristina A. Pires: 

A ironia tornou-se instituição com a filosofia socrática, como tática de simulação da ignorância; passou depois para a literatura helênica e foi posteriormente adotada por Shakespeare, Cervantes e Swift, entre muitos outros. Com F. Schlegel, no século XVIII, a ironia encontra na literatura e especialmente na narrativa um terreno fértil para expressar-se, tornando-se elemento constitutivo da arte de representar e comunicar. (...) A partir de Schlegel e do Romantismo a ironia alargou sua carga significativa e ganhou autonomia, tornando-se uma marca da literatura pós-romântica. (PIRES, in DUARTE, 1994, p. 24) 

Apropriada pela visão de mundo do ceticismo, no entanto, a ironia se constituiria numa outra peculiaridade dessa corrente filosófica, forjada quase mesmo que sob medida para ela. Na ficção de Machado de Assis, autor reconhecidamente cético, a ironia funciona como “outra maneira de flagrar a duplicidade da palavra”, conforme observa Ivo Barbieri, em estudo no qual destaca a “figura do duplo” em Esaú e Jacó (BARBIERI, 1985, p. 24). Em um texto em que discute as relações entre o ceticismo e a fenomenologia, bem como a formação do “primado da dúvida”, base de todo o pensamento moderno, Gustavo Bernardo, por sua vez, enfatiza o papel da ironia no pensamento cético, que o impediria ainda de tornar-se dogmático, “absolutizando” a dúvida: 

Se o cético não se quer dogmático, não pode afirmar o contrário do que critica, mas simplesmente deixa em suspenso, sob suspeita, as certezas existentes. Essa suspensão, essa suspeita, exigem uma certa ironia bastante fina, dando inclusive tempo ao pensamento, que se esfalfa quando supõe que a verdade ou as respostas certas se encontram logo ali na esquina. (BERNARDO, 2000, p. 139) 

Assim, ao colocar as certezas sob suspeita, forçosamente o ceticismo encerraria a dimensão irônica enfatizada por Gustavo Bernardo. Deste ponto de vista, a ironia equivaleria, no método cético fundado por Pirro, à epokhé, ou seja, a suspensão cética do juízo, etapa necessária à obtenção da ataraxia – atitude de quem nada perturba – à qual se sucede por fim, e como decorrência natural, a adiaphoria, isto é, a indiferença.27 Ao evidenciar as contradições da existência humana, a ironia suspenderia o juízo sobre elas, que seriam, desse modo, “ataraxicamente” suportadas.

Cabe observar ainda que, na literatura, muitas vezes, o intenso uso da ironia, como parte de uma visão cética contida na obra de um determinado autor, faz com que esse autor se coloque – ou seja colocado – à margem do estilo literário dominante naquele período. A obra de Machado de Assis, no final do século XIX e início do XX, seria “emblemática” deste tipo de ocorrência, colocando-se simultaneamente acima e à margem das características literárias que predominavam naquela época. 

 

4.2 – Literatura, História e jornalismo em Machado de Assis: o olhar cético

 

A atividade jornalística de escritores como José de Alencar, Joaquim Manoel de Macedo e Machado de Assis tem sido objeto de estudos os mais diversos, evidenciando assim a importância do “intercâmbio” entre os campos do jornalismo e da literatura na sociedade brasileira do século XIX. Marisa Lajolo e Regina Zilberman reconhecem mesmo a existência de um “pacto” entre a literatura e a imprensa no Brasil oitocentista: 

Imprensa e literatura são formações discursivas diferentes, emanadas de lugares sociais igualmente distintos; mas ambas integram o mesmo sistema da escrita. Não se confundem, posto sejam intercomunicantes. E o fato de a imprensa, durante certo tempo e em certos casos, financiar a literatura é, talvez, a manifestação mais visível desta intercomunicabilidade. (LAJOLO e ZILBERMAN, 1999, p. 68). 

No jornal brasileiro oitocentista, com suas peculiaridades prosaicas e sua feição de “bazar”, que abrigava escândalos, crimes, intrigas e bajulações políticas, conforme comentam Lajolo e Zilberman (op. cit., p. 69), convivem a tentativa de modernização e o flagrante atraso, como se pode observar pelo anúncio de vendas de livro, publicado no jornal O Mensageiro, de Porto Alegre: 

Na Rua da Graça, na casa de Antônio Álvares Pereira Coruja vende-se uma escrava crioula ainda moça que faz todo o serviço de uma casa, e tem muito préstimo para roça. Também se vendem os seguintes livros: Sintaxe de Dantas, Dicionários Franceses da Academia, Obras grandes de Virgílio, Eutrópio, Horácio e Fedro, Ortografia de Madureira, Dicionário de Moraes 4ª edição, Magnus Lexicon Latino, 6 volumes da Coleção de Leis do Brasil, e Dicionário Geográfico de Vosgien, e Compêndios da Gramática Nacional. (Publicado em O Mensageiro, transcrito por MOTTIN, Antônio J. S. et alii, e citado por LAJOLO e ZILBERMAN, 1999, p. 68) 

Note-se, porém, que esta associação, no mesmo anúncio, de coisas tão díspares como escravos e dicionários franceses, não era pertinente apenas a regiões remotas, distantes da Corte, como a região gaúcha. No próprio Rio de Janeiro, à época do Romantismo, escritores como José de Alencar e Joaquim Manuel de Macedo eram obrigados a mandar vender seus livros em balaios, à moda da feira livre, por escravos, prática que documenta as dificuldades do escritor brasileiro de então (LAJOLO e ZILBERMAN, 1999, p. 68). A uma conjuntura nada favorável para a literatura e a imprensa, acrescenta-se, também no século XIX brasileiro, o problema da escravatura, com a consequente ausência de um mercado consumidor, além do reduzido número de leitores, num país de maioria analfabeta.

No entanto, como observa Jean-Michel Massa, o saldo da estreita relação entre a literatura e o jornalismo, no Brasil oitocentista, tornou-se extremamente positivo para a literatura machadiana. Da passagem pela imprensa militante, na juventude, teria restado para Machado de Assis a “facilidade em redigir num instante um artigo e em seguida um conto. O volume considerável de sua obra literária se explica também por esta facilidade adquirida no trabalho quotidiano. Aquele que havia permanecido até 1860 um escritor amador adquirira no Diário [do Rio de Janeiro] uma maneira, uma técnica de escrever bastante pessoal” (MASSA, 1971, p. 304).

Ambientada em grande parte no Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX, não se pode dizer que a ficção machadiana esteja circunscrita no tempo e no espaço. Ao contrário da obra de José de Alencar, inserida, simultaneamente, no “tamanho fluminense” e nos valores importados – ou talvez impostos – da ideologia liberal europeia, conforme analisado por Roberto Schwarz28 (1977), Machado de Assis –  dono de uma vasta obra que vai desde a crítica teatral e a dramaturgia, passando pela crônica de jornal e chegando aos contos e romances que o consagraram – parece mesmo extrapolar espaço e tempo, alcançando posição de indiscutível destaque na literatura brasileira.

A dimensão cética, reconhecidamente encerrada no texto machadiano, teria desempenhado aí papel importante. Como visto, o ceticismo parece ter-se mantido alheio, ao longo dos séculos, à “disputa discursiva” que se originou na Grécia Antiga, fundamentada, basicamente, no dualismo do pensamento platônico-aristotélico, que promove a separação entre “essência” e “aparência”, entre “verdade” e “mentira”, entre “realidade” e “ficção”, entre “mundo real” e “mundo do como se”, ou como quer que se apresente tal dicotomia em suas várias terminologias. Mantendo um distanciamento da visão dicotômica do pensamento ocidental, quer de natureza ontológica ou sofística,29 a obra machadiana, calcada numa visão cética, admitiria o perfeito imbricamento entre História e Literatura, cuja “disputa discursiva” não seria de modo algum alvo de suas preocupações. Terezinha Barbieri, comentando a relação entre História e Literatura na ficção de Machado de Assis, observa que a História “não constitui barreira à imaginação do ficcionista, nem ela se anula com a intromissão desta. Na verdade, as relações da História com a ficção é confronto de pergaminho contra pergaminho, pois a História não começa nos fatos mas na palavra escrita” (BARBIERI, 1996, p. 107).

Substituindo a visão dicotômica que separa em pólos opostos e antagônicos “realidade” e “ficção”, o ceticismo, na literatura, admite tal miscigenação. Analisando o ceticismo em Dom Quixote, Eunice Piazza Gai chama a atenção para o “processo de ficcionalizar o mundo, ou de eliminar os parâmetros entre o que é tido como real ou irreal” (GAI, 1997, p. 11), verificado na obra cervantina, numa evidente ausência de preocupação em separar radicalmente a “verdade” da “mentira”, a “realidade” da “ficção”.

Na ficção machadiana, na qual o “diálogo com a História” é bastante visível em obras como Esaú e Jacó e Quincas Borba, talvez seja o romance Memórias póstumas de Brás Cubas que melhor trabalhe com a fragilidade das fronteiras entre o real e o irreal. Nesse livro, a noção de uma “narrativa póstuma” rompe definitivamente com o senso comum acerca do conceito de “obra póstuma” – publicada após a morte do seu autor. Nas “memórias póstumas” machadianas, o narrador não seria “apenas” defunto, mas trata-se precisamente de um “defunto-narrador”. As Memórias póstumas seriam, por assim dizer, uma obra póstuma ao “pé da letra”, por um lado, e, por outro, possível de ser concebida apenas ficcionalmente. A utilização de tal recurso conferiria às Memórias póstumas um caráter de “região fronteiriça” entre os campos do real e do irreal, os quais, numa visão puramente dicotômica, seriam considerados radicalmente distintos.

De outro lado, em Quincas Borba, a História torna-se parte da vivência cotidiana dos personagens, como se pode observar no capítulo XXI, que traz, no diálogo travado, uma referência à “fala do trono sobre a propriedade servil”. Costuradas à literatura, as referências históricas, nesse romance, servem por vezes para, inversamente, costurar a narrativa. Descrevendo o encontro de Rubião com o casal Palha, no trem em que o primeiro ia de Barbacena para o Rio de Janeiro, e retomando um flashback que teve início no final do capítulo III, quando o narrador propõe “deixar Rubião na sala de Botafogo, batendo com as borlas do chambre nos joelhos, e cuidando na bela Sophia”, e ir vê-lo, “meses antes, à cabeceira do Quincas Borba”, a narrativa do capítulo XXI desliza, sutilmente, do passado obscuro do ex-professor provinciano para um presente promissor, que avança, sobre os trilhos do progresso, para um futuro venturoso na Corte:

Cristiano foi o primeiro que travou conversa, dizendo-lhe que as viagens da estrada de ferro cansavam muito, ao que Rubião respondeu que sim; para quem estava acostumado a costa de burro, acrescentou, a estrada de ferro cansava e não tinha graça; não se podia negar, porém, que era um progresso... / De certo, concordou o Palha. Progresso e grande. / — O senhor é lavrador? / — Não, senhor. / — Mora na cidade? / — De Vassouras? Não; viemos aqui passar uma semana. Moro mesmo na Corte. Não teria jeito para lavrador, conquanto ache que é uma posição boa e honrada. / Da lavoura passaram ao gado, à escravatura e à política. Cristiano Palha maldisse o governo, que introduzira na fala do trono uma palavra relativa à propriedade servil; mas, com grande espanto seu, Rubião não acudiu à indignação. Era plano deste vender os escravos que o testador lhe deixara, exceto um pajem. (...) Palha desconversou, e passou à política, às câmaras, à guerra do Paraguai, tudo assuntos gerais, ao que Rubião atendia, mais ou menos. (ASSIS, 1977) 

Assim, ao suspender ceticamente os conceitos de real e irreal, e apresentar um “imbricamento” entre a História e a Literatura, campos que não seriam considerados, necessariamente, excludentes, o olhar machadiano realizaria, por meio da ficção, uma espécie de superação do ponto de vista dicotômico, herdeiro da filosofia platônico-aristotélica, de caráter essencialista e ontológico.30 Daí a “singular ocorrência” da obra machadiana no cenário da literatura brasileira oitocentista, diluindo os seus contornos temporais e espaciais.

 

4.3 – O excêntrico Rubião: metade luxo, metade inculto

 

Se os textos naturalistas possuem a pretensão de ser “fotografia do real”, como visto no capítulo 1 deste trabalho, o mesmo não pode ser dito da estética machadiana. Contrapondo-se ao Naturalismo em voga na época, a ficção de Machado de Assis – sobretudo a partir da chamada “segunda fase”, inaugurada, de acordo com os estudiosos, com a publicação de Memórias póstumas de Brás Cubas (1880/1) – parece se afastar cada vez mais da ideia de “texto fotográfico”.

Produzida em data anterior à introdução do kinetoscópio e do cinematógrafo no Brasil – que, segundo Flora Süssekind (1987, p. 40), ocorreu em 1894 e 1896, respectivamente31 –, a ficção machadiana parece lançar mão, muitas vezes, da técnica cinematográfica, com o emprego de cortes, emendas e montagens. Exemplo disso seria a passagem da versão em folhetim para a versão em livro do romance Quincas Borba – o folhetim, publicado no período de 15/06/1886 a 15/09/1891, e o livro, em 1891. Ao lançar mão de recursos coincidentemente utilizados pelo cinema anos depois, a ficção machadiana se afastaria, definitivamente, da concepção fotográfica dos textos naturalistas, antecipando, na literatura, a revolução que o cinematógrafo viria provocar, no âmbito da técnica, ainda nos finais do século XIX.

As mudanças efetuadas na versão do Quincas Borba publicada em livro são tantas e tais, que levou John Gledson a comentar ser “surpreendente que não haja ainda nenhuma descrição adequada, sistemática, das alterações feitas por Machado” (GLEDSON, 1986, p. 69). Para ele, o estudo de Augusto Meyer, “Quincas Borba em variantes”, é “um ensaio interessante, mas que se limita a contrastar as duas versões como se fossem dois livros completos e acabados” (op. cit., p. 69).

No cotejo das versões do Quincas Borba, pode-se constatar, além de substituições e acréscimos, o corte de capítulos inteiros ou grande parte deles – o que implicou um “lamentável sacrifício literário”, sobretudo de “algumas finas observações psicológicas”, como nota Augusto Meyer (1964, p. 175). No entanto, diferindo do ponto de vista de Meyer, que considera que tais cortes obedeceram ao princípio de “só deixar o que parecia [a Machado de Assis] menos desarmônico, (...) [n]uma espécie de intuição cirúrgica” (op. cit., p. 174), consideramos que, na versão em livro, o foco narrativo foi evidentemente “fechado” sobre a figura de Rubião. Desta forma, os cortes realizados – os quais Augusto Meyer vê como o resultado de uma “autocensura” rigorosa para com o “momento impuro da criação”, que afetaria até mesmo a “intuição criadora” (Meyer) – passariam a ser vistos, aqui, como parte de um trabalho de redirecionamento do foco narrativo, à maneira cinematográfica, eliminando-se as passagens que não possuem relação direta com o protagonista Rubião.

Assim, os cortes verificados na versão em livro do Quincas Borba, bem como as substituições, as fusões e os acréscimos efetuados, encontrariam uma lógica na busca de maior visibilidade do personagem Rubião. Em sua maioria, no folhetim, as passagens cortadas trazem à cena episódios referentes a outras personagens, compondo narrativas paralelas à trajetória circular do simplório professor de Barbacena, e ocupando grandes espaços na cena narrada.

O realce concedido a Rubião na versão do Quincas Borba em livro não teria, porém, a preocupação de “explicar” essa complexa personagem. Longe de “desvendar” a imbricada personalidade de Rubião, teria antes o efeito de chamar a atenção sobre a sua figura dúbia e impossível de ser plenamente decifrada. A “iluminação” sobre Rubião pretenderia, deste ponto de vista, destacar o seu aspecto de excentricidade, que lhe confere um caráter “esdrúxulo”, o que por sua vez nos permite fazer inferências sobre o papel que este personagem desempenha na narrativa.

Se Rubião “representa o Brasil”, como afirma John Gledson (1986, p. 71), o Brasil que ele representa é, porém, o Brasil provinciano, arcaico, atrasado e inculto, em eterno contraste e anacronismo com o Brasil que se quer moderno, civilizado, avançado e culto, em perfeita sintonia com as mais desenvolvidas nações ocidentais. Deste modo, a questão da “identidade brasileira”, trabalhada à exaustão pelos românticos, que a percebiam de forma idealizada, parece ser retomada por Machado de Assis, no Quincas Borba, à luz de aspectos que ou foram negados pelo ideário romântico brasileiro, ou foram tratados pelos naturalistas pelo viés das teorias positivistas da “raça” e do “meio”.

A abordagem da questão da identidade brasileira, no Quincas Borba, se daria pois às avessas do modo positivista – seja romântico ou naturalista –, que parte de apriorismos para chegar a conclusões ratificadoras. A imagem bipartida de Rubião, que configuraria apenas um dos complexos aspectos da sua identidade, é construída, no Quincas Borba, por meio de uma narrativa que privilegia as lacunas, as margens, o meio do caminho, o “não dizer tudo”, sem falar na ambiguidade e na dubiedade, contrariando por essa forma as afirmações indubitáveis de românticos e naturalistas.

Para Roberto Schwarz (1990), a dualidade, “desconjuntada por natureza”, da sociedade brasileira oitocentista, ao mesmo tempo escravista e burguesa, constituiria o próprio mecanismo estrutural das Memórias póstumas de Brás Cubas, romance considerado como o “divisor de águas” da obra machadiana, inagurador da fase dita “madura” do romancista. O deslocamento, que nas Memórias póstumas operaria na divergência entre a ideologia liberal importada da Europa e a realidade brasileira calcada na oligarquia clientelista, no favoritismo e no tráfico de escravos, em Quincas Borba residiria na própria figura de Rubião, de origem provinciana, cujos valores tradicionalistas se chocam com os valores mundanos da Corte, regidos pelo código do “jogo de salão”, que ele não domina.

Enquanto nas Memórias póstumas de Brás Cubas a relação Corte/valores liberais seria abordada pela perspectiva de um membro da elite econômica brasileira, em Quincas Borba, o que estaria sendo trabalhada seria a relação província/Corte, vista desta vez pela “saga urbana” (PASSOS, 2000, p. 97) de um mestre-escola provinciano. Haveria assim um redimensionamento da problemática da duplicidade cultural brasileira – “fratura formal”, para Schwarz –, a partir de um ângulo interno – isto é, inerente ao próprio país, e não mais em confronto com modelos culturais estrangeiros. Note-se ainda que, se a dualidade da sociedade brasileira oitocentista, na narrativa das Memórias póstumas, adquire um “efeito risível”,32 conforme observa Schwarz, em Quincas Borba, por seu turno, este efeito é levado ao paroxismo, sobretudo com a “filosofia do Humanitismo”, ambientada, por fim, em Barbacena – ou seja, na província –, palco das últimas exclamações ensandecidas de Rubião: “Ao vencedor, as batatas!”.

Para Schwarz, não apenas a estrutura narrativa das Memórias póstumas reproduziria a estrutura dual da sociedade brasileira – um híbrido de “modernidade” e “atraso” –, mas as próprias personagens são construídas com base nessa mesma dualidade. Deste modo: 

Em Brás Cubas convivem o cavalheiro esclarecido, o inventor charlatão, o discípulo de um doido, o deputado absurdo. Cotrim abriga na sua pessoa um comerciante respeitável e um contrabandista flagelador de africanos. Analogamente, ocultada nas piruetas lítero-filosóficas do narrador ilustrado, reconhecemos a fisionomia específica de um engendro da escravidão. O quase-ministro Lobo Neves é uma águia em política, mas deve a cadeira de deputado ao sogro e recusa a presidência de uma província porque a nomeação saiu no dia 13. E a própria Virgília, tão elegante e desenvolta no adultério, só ama fora do casamento porque “é a vontade do céu”, além de recitar o catecismo inteiro por ocasião de trovoadas. O leitor notará que o denominador comum do elenco está no contraste entre a face pública, marcada pelo ar de Corte e modernidade, e os traços em que se vê ou adivinha a Colônia. (SCHWARZ, 1990, p. 182) 

Por outro lado, Rubião seria a própria imagem da coexistência do atraso e do progresso numa mesma personagem. Assim, na passagem em que ele se encontra casualmente com a baronesa que vai ao escritório de Camacho (capítulo 62 do livro, parágrafo 595), fica patente a dualidade entre o mundo luxuoso da Corte e os valores provincianos de um mestre-escola simplório. “Apesar do seu próprio luxo”, Rubião sente-se “o mesmo antigo professor de Barbacena”, em contraste com a “senhora titular, cheirosa e rica” da Corte, acostumada à sociabilidade cortesã. Observe-se ainda que essa passagem constitui um “acréscimo”, uma vez que não existe na versão em folhetim, e representaria um “reforço” da imagem bipartida de Rubião, oscilando entre dois mundos distintos – “luxuoso e cortês”, de um lado, e, de outro, “provinciano e inculto”.

Destacando/“iluminando” o aspecto de um conflito intrínseco, decorrente da “duplicidade cultural” que conforma a sociedade brasileira, o próprio nome do protagonista parece apontar, também, para esse confronto entre o grande, o avançado, o luxuoso, o moderno, de um lado, e o pequeno, o retrógrado, o humilde, o arcaico – entre a Corte e a província, entre o Rio de Janeiro e Barbacena, entre “o Brasil do litoral” e “o Brasil do interior”. Para John Gledson, Rubião “é um nome incomum, cuidadosamente escolhido, como está patente, e sua mais convincente interpretação é a de que se relaciona com o boom do café, em meados do século XIX, pois está muito próximo do nome latino do gênero ao qual pertence a planta do café, a rubiaceae.” (GLEDSON, 1986, p. 72). No entanto, “Rubião” também nos afigura um “rubi” – pedra preciosa extraída do interior da terra – que se pretende “grande”. “Pedro Rubião” seria, pois, deste ponto de vista, uma “pedra rubi grande”, sendo que o Alvarenga sobreposto estaria aí complementando a ironia, conferindo ao nome uma linhagem “nobre”. Tal junção produziria, no entanto, um efeito de incompatibilidade entre a rudeza de Pedro-pedra – embora “rubi” – e a declarada nobreza dos Alvarenga, sugerindo por esta forma a “união” de dois elementos a priori “incompatíveis”.

A confluência de dois códigos distintos e, por natureza, inconciliáveis, que produz a “fratura formal” observada por Schwarz, teria por consequência, na narrativa do Quincas Borba, o “descentramento” de Rubião, personagem “excêntrico”, que tenta acomodar em si uma duplicidade impossível, e acaba por ser, por isto mesmo, duplamente excluído – do “jogo social” e do “jogo amoroso”. Observe-se que, em Machado de Assis, enquanto as personagens femininas, como Capitu, Sofia e Virgília, tentam “driblar” uma situação por natureza “ambígua”, num “falso ajustamento” psicológico e social, acomodando os seus interesses à hipocrisia da sociedade burguesa, o mesmo não acontece com os personagens masculinos. Quincas Borba, Rubião e Bentinho compõem, como observa Costa Lima, uma curiosa “galeria de loucos”, cada um realizando a loucura à sua moda: 

A loucura de Quincas e de Rubião, seu discípulo, se expunha a partir de indivíduos que não participavam da sociedade – seja porque a volta da fortuna já encontrara o personagem possuído pela demência, seja porque a riqueza já o alcançara quando era tarde para que aprendesse a linguagem dos “homens bons”. Diversa era a loucura de Bentinho, que o acometia, não pela distância quanto à linguagem “culta”, mas por sua interiorização excessiva. (LIMA, 1981b, p. 112) 

Retornando à problemática anunciada no nome de Rubião, a ironia fica ainda mais patente quando se sabe que existe uma variedade de rubi, “de valor médio, pertencente ao grupo dos espinélios, empregada na confecção de mancais para relógios e instrumentos de precisão”, conforme nos informa a Enciclopédia Larousse Cultural. Assim, Rubião, aquele que se pretende um “rubi grande”, e, por isso, “precioso”, sequer poderia servir de matéria-prima, como os rubis de “valor médio”, para “instrumentos de precisão”. Ao contrário, à sua excentricidade, que culmina em loucura, só resta a imprecisão, a confusão e o delírio mental, somados ao “coroamento do nada”: “ele pegou em nada, levantou nada e cingiu nada; só ele via a insígnia imperial, pesada de ouro, rútila de brilhantes e outras pedras preciosas” (ASSIS, 1977 p. 345).


CONCLUSÃO


Enquanto o mito da racionalidade moderna do século XVIII, o “Século das Luzes”, provocou o “desencantamento do mundo”, com a negação da cultura mágica e a expulsão de anjos, demônios e feiticeiras do mundo civilizado e racionalizado, conforme observa Max Weber (1979), a derrocada do mito positivista na contemporaneidade representaria, por sua vez, uma espécie de “segundo desencantamento do mundo”, no qual a própria razão foi “desencantada”. Por outro lado, a emergência e expansão do aparato tecnológico que acompanhou esse “segundo desencantamento do mundo”, ao mesmo tempo em que permite que a mercadoria, ainda capitalista, se torne “espetacular”, segundo a definição de Guy Debord (1997), também possibilita, no entanto, a retomada de uma dimensão “encantatória” no mundo contemporâneo. Assim, os aparelhos tecnológicos seriam, de acordo com a visão de Vilém Flusser (1983), as “caixas pretas misteriosas e mágicas” do mundo do pós-guerra – um mundo esvaziado do sentido racional que a modernidade buscou alcançar.

A linguagem midiática, expandindo-se com a tecnologia da “era da comunicação de massa”, passou a adquirir, na contemporaneidade, o estatuto de “mito”. Esse mito, no qual a tecnologia é, ao mesmo tempo, banal e espetacular, seria o substituto, no mundo contemporâneo, do mito iluminista da razão, que teve seu auge com o positivismo comtiano. Fazendo uma analogia das diversas esferas do pensamento ocidental com os mitos e ritos religiosos, Flusser (1999) conclui que os “mitos” modernos – para ele, as ciências exatas, a tecnologia, a psicologia, a economia planejada e a arte abstrata – são “esvaziamentos do intelecto”, decorrentes de uma completa dogmatização do pensamento, que leva a um estado de estagnação. Para a continuidade da “conversação” no Ocidente, Flusser propõe a derrubada dos mitos ocidentais pelo “sacrifício” do orgulho que, segundo ele, permeia todas as conquistas da modernidade.

A partir dos conceitos saussureanos de significante, significado e signo, Roland Barthes, na segunda parte de Mitologias, define o mito como um duplo sistema semiológico, ou seja, uma dupla “fala”, “visto que ele se constrói a partir de uma cadeia semiológica que existe já antes dele: é um sistema semiológico segundo” (BARTHES, 1987, p. 136). Para Barthes, “o mito prefere trabalhar com imagens pobres, incompletas, onde o sentido está já diminuído, disponível para uma significação” (op. cit., p. 148).

O diálogo entre os campos semióticos da literatura e dos meios de comunicação de massa no Brasil, objeto deste estudo, evidencia a presença, no interior do texto literário, de uma dupla linguagem. De um lado, a linguagem dos media, e, de outro, a linguagem literária, sistema híbrido por excelência. Ao ser transportada para o interior da literatura – segundo Barthes, também um “sistema mítico” (BARTHES, 1987, p. 155) –, o mito contemporâneo dos media lhe conferiria um caráter peculiar. Acolhendo o ponto de vista bartheseano de que o mito se institui como um duplo sistema semiológico, ou uma dupla linguagem, a literatura brasileira da contemporaneidade apresentaria um caráter duplamente “mítico”, abrigando em si, deste modo, não duas, mas quatro falas.

Se a literatura contemporânea, duplamente “mítica”, transporta para o seu interior a linguagem tecnológica dos media, em contraparte, estes últimos também possuem a capacidade de realizar o intercâmbio semiótico inverso, abrigando em si a “narrativa”, elemento literário por excelência. Os filmes norte-americanos de faroeste, relatando as aventuras dos desbravadores do Oeste dos Estados Unidos no século XIX, seriam, neste sentido, exemplares. Surgido na época do apogeu hollywoodiano, o western – um produto tecnológico por excelência – narra, mítica e paradoxalmente, um mundo que desapareceu justamente com a chegada da tecnologia.

A duplicidade de linguagens da literatura brasileira contemporânea remeteria ainda ao conceito adorniano de “fratura formal”, segundo o qual a obra de arte foge às limitações e ao controle do autor, deixando à mostra, em última instância, o seu substrato histórico e social. A produção literária, como toda obra artística, seria portadora, necessariamente, de marcas, tornadas indeléveis, do seu momento histórico e social. Na contemporaneidade, em que a característica mais evidente é a tecnologia da comunicação de massa, essas marcas históricas e sociais se imprimiriam também na literatura produzida. No entanto, para Adorno (1985), a esfera da cultura, na qual está inserida a literatura, também é o lugar de preservação da dimensão crítica da sociedade. Assim, a literatura, encerrando a dimensão crítica própria à cultura, e portando a “voz literária”, revela um olhar crítico sobre a cultura de massa, ainda que, paradoxalmente, esta se apresente imiscuída em seu interior.

Se, por um lado, a literatura brasileira contemporânea, abrigando em si a linguagem dos media – os “mitos” no mundo atual – se apresenta em perfeita sintonia com a cultura tecnológica e informatizada do Ocidente, muitas vezes este diálogo é repleto de tensões e contradições. Como observa Carlos Nelson Coutinho, a história da cultura brasileira “pode ser esquematicamente definida como sendo a história dessa assimilação – mecânica ou crítica, passiva ou transformadora – da cultura universal. (...) [Porém,] esse vínculo com a cultura universal não impõe necessariamente um caráter dependente ou ‘alienado’ à totalidade de nossa cultura” (COUTINHO, 2000, p. 45-6).

A visão cética, apropriada por Machado de Assis em fins do século XIX e presente em muitas das obras literárias brasileiras contemporâneas, analisadas ao longo deste trabalho – notadamente na obra de autores como Guimarães Rosa, João Gilberto Noll, Diogo Mainardi e Rubens Figueiredo –, parece encerrar com maior propriedade a dimensão crítica da literatura contemporânea, tornando-se traço comum na prosa dos escritores brasileiros, diante de um contexto caótico e conturbado. Valendo-se do ceticismo, a ficção literária no Brasil, desde Machado de Assis, não teria a intenção de “ordenar o caos” – função reservada ao mito, segundo Mircea Eliade (s/d) –, mas antes resguardar a “voz da cultura” em meio à barbárie – ainda que essa seja uma barbárie “espetacular”.

Ao contrário da obra de José de Alencar, essencialmente “mítica”, preocupada em fundar uma “identidade” para a literatura brasileira, a ficção machadiana, inaugurando um novo modo de produção literária no Brasil, não teria o intuito de “elaborar mitos”, à maneira alencarina, mas desmitificá-los. Sobretudo nos romances Memórias póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba, a noção, erigida pelos românticos, de uma “identidade brasileira” como algo unitário e coeso torna-se fragmentada, calcada justamente na duplicidade que a compõe, conforme visto no item 4.3 deste trabalho.

A meio caminho entre o “local” e o “universal” – definido por Antônio Cândido como a “dialética do localismo e do cosmopolistismo”, ou a oscilação entre duas tendências: a “afirmação de nacionalismo literário e um declarado conformismo, a imitação consciente dos padrões europeus” (CÂNDIDO, 1960, p. 131) –, a literatura do Brasil parece possuir ainda um caráter de “excentricidade”. Sem estar propriamente à margem da cultura ocidental, com a qual dialoga permanentemente, a literatura brasileira também não se acha no seu centro. Orbitando entre o “centro” e a “margem”, tornar-se-ia “ex-cêntrica”, qualidade que perpassa a literatura brasileira como um duplo fio de cor, apontando, um, para a “esperança” do reconhecimento internacional, e, outro, para a “palidez” da estagnação. Qualidade que pressupõe, para além de toda diferença, uma alteridade, um permanente diálogo com o Outro, esteja ele do lado de “cá”, ou de “lá”, margens que, em tal contexto, tornam-se ambíguas e imprecisas.


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TORRES, Antônio. Essa terra. Rio de Janeiro: Record, 2000. [1976] 

______. O cachorro e o lobo. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 1997. [1996]  

TRAVANCAS, Isabel. O livro no jornal: os suplementos literários dos jornais franceses e brasileiros nos anos 90. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001. 

VENTURA, Tereza. A poética polytica de Glauber Rocha. Rio de Janeiro: Funarte, 2000.

WEBER, Max. “A ciência como vocação” e “A política como vocação”. In: ______. Ensaios de sociologia. Org. e introdução de H. H. Gerth e C. Wright Mills. Trad. Waltensir Dutra. 5. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. 

WHITE, Hayden. “O texto histórico como artefato literário”. In: Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. Trad. de Alípio Correia de Franca Neto. São Paulo: EdUSP, 1994. (Ensaios de Cultura, v. 6) 

XAVIER, Ismail. Sertão mar: Glauber Rocha e a estética da fome. São Paulo: Brasiliense, 1983.


NOTAS

1 Os “abalos sociais” provocados pelo “novo imperialismo” resultou em revoltas como o Movimento Nacional Egípcio (1879-1882) e a Restauração Meiji no Japão (1868), até as Revoltas da Vacina e dos Sapatos, no Rio de Janeiro da Belle Époque (ver SEVCENKO, 1983, p. 33 e 44). 

2 O ensaio de Foucault referente ao quadro de Velázquez está incluído no livro As palavras e as coisas, de 1966, no qual o autor desenvolve a sua teoria sobre a linguagem, e que foi objeto de uma observação de Laplanche sobre o termo “derivação”, empregado por Foucault na análise da linguagem na época clássica. Em seu texto, Laplanche destaca o caráter paradoxal, ao mesmo tempo “específico” e “derivado”, da terminologia psicanalítica, enquanto, por outro lado, apresenta as “relações ambíguas e dialéticas” entre a metáfora e a metonímia (ver LAPLANCHE, 1985). 

Massimo Canevacci, em seu estudo sobre o cinema, considerando-o a partir de uma ótica essencialmente marxista, vê a ilusão cinematográfica como uma das faces da ideologia dominante – isto é, burguesa – da sociedade capitalista. Para o antropólogo italiano, o cinema seria o “máximo produtor de ideologias mercantilizadas do século vinte” (CANEVACCI, 1984, p. 21), cuja ilusão, também ideológica, deveria ser rechaçada. 

4 Para uma análise detalhada do drama moderno e do teatro naturalista e sua derrocada na contemporaneidade, ver SZONDI (1987). 

5 Embora conservador, o pensamento sociológico de Gilberto Freyre se contrapõe ao racismo de Oliveira Vianna e de outros sociólogos contemporâneos a ele, que viam no fenômeno da mestiçagem ocorrida no Brasil um fator de degradação da raça brasileira. Para Freyre, ao contrário, a mistura das raças era um fator positivo na formação do povo brasileiro. Dessa idéia, nasceu o mito da democracia racial brasileira, base de todo o pensamento do sociólogo pernambucano. Segundo esse mito, o fenômeno da miscigenação representa uma “confraternização” entre as três raças formadoras da sociedade brasileira – o português, dominador, o índio, natural da terra, e o negro, vindo da África em posição subalterna (FREYRE, 1954). 

6 O “código moderno” utilizado por Nelson Rodrigues em sua obra seria, segundo Victor Hugo A. Pereira, a “referência a alguns princípios e práticas que a teoria psicanalítica divulgou e se tornaram lugar comum na cultura ocidental” (PEREIRA, 1999, p. 141). 

7 A respeito da “amizade ambígua” de Riobaldo e Diadorim, Antônio Cândido chama a atenção para a “aparência masculina” de Diadorim como fator de obliteração do desejo de Riobaldo, resultante de um “instinto poderoso” (CÂNDIDO, 1983, p. 307). Deste modo, coerentemente ao pensamento cético, a aparência de Diadorim exerceria sobre Riobaldo o efeito de uma “verdade”: a verdade que ele via. 

8 “Entre o desvio impraticável e a iminência da trivial Literatur, coloca-se a narrativa de Rubem Fonseca” (LIMA, 1981, p. 147). 

9 “A frase final [do conto Feliz Ano Novo] retoma intacto o clichê trocado na ocasião. Mas o clichê está descontextualizado e isso ressalta seu automatismo. (...) A subtração do contexto não rompe com o clichê, como faria a técnica do desvio; ao contrário, o amplia e revela seu absurdo” (LIMA, 1981, p. 150). 

10 A respeito do caráter “literário” das narrativas bíblicas, ver BLOOM (1995, p. 14 e 15). 

11 No ensaio O evangelho segundo João, Silviano Santiago, num ponto de vista exatamente oposto, defende a idéia de que a “palavra porosa” de Noll, como o ensaísta denomina a escrita nolliana, seria explicada por uma espécie de “militância religiosa” presente na narrativa de A fúria do corpo, romance de 1981 (SANTIAGO, 1989). 

12 A imagem do cavalo aparece também no conto Marilyn no inferno, que relata as filmagens do “primeiro western rodado no Brasil”, numa Baixada Fluminense que “imita as pradarias do Arizona” (NOLL, 1980, p. 36). 

13 “Como não havia a Igreja de condenar no actor o exercício [de resumir tantas almas em um só corpo]? Ela repudiava nessa arte a multiplicação herética das almas, o deboche das emoções, a pretensão escandalosa de um espírito que se recusa a viver um só destino” (CAMUS, s/d, p. 104). 

14 Além de Nur na escuridão, outros livros “árabes-brasileiros” também marcam presença na literatura brasileira, como Lavoura arcaica (1975), de Raduam Nassar, A incrível história do capitão mouro (s/d), de Georges Boudoukan, e Relato de um certo Oriente (1989) e Dois irmãos (2000), ambos de Milton Hatoum. 

15 Embora Le Goff descreva as “técnicas de rememoração”, ou mnemotecnia, existentes desde a Antiguidade, cuja invenção é atribuída ao poeta Simônides de Céos (cerca de 556-468 a. C.), para ele, “a memória humana é particularmente instável e maleável (crítica hoje clássica na psicologia do testemunho judiciário, por exemplo)”. Daí a importância do papel desempenhado pelas fichas catalográficas do século XX na organização da memória coletiva (LE GOFF, 1992, p. 468).

16 No conto O museu Darbot, de Victor Giudice, que também trata da “mitificação” de um pintor desconhecido, a relação com os meios de comunicação de massa é inversa à de Barco a seco: em lugar de votar ao desprezo o papel desempenhado pela mídia, esta possui grande relevância, na trama narrativa, para a construção da lenda de Darbot (GIUDICE, 1994). 

17 “O termo udigrudi foi inventado, parece, por Glauber Rocha, numa invectiva aos filmes do ‘underground’ caboclo. E seu tom pejorativo foi devidamente invertido pelos divergentes do cinema novo, que dele se apropriaram, já que definia sua proposta” (MONTEIRO, 1979/80, p. 126). 

18 Surgida de uma comunicação de Glauber Rocha no Seminário “Terzo Mondo e Comunità Mondiale”, realizado em Gênova, Itália, em 1965, a Estética da Fome tornou-se, ao lado do lema “uma câmera na mão e uma idéia na cabeça”, uma espécie de “manifesto” do Cinema Novo.

19 Numa das cenas do filme Idade da Terra, o Cristo Negro, vivido por Antônio Pitanga, desafia o americano John Brahms, interpretado por Maurício do Valle, a “ouvir a voz do Terceiro Mundo”. E essa “voz” é a própria voz de Glauber Rocha, em off, sobre a imagem de Brasília, discursando sobre o “mundo rico” e o “mundo pobre”. 

20 Como observa Eunice Piazza Gai, “tradicionalmente, a crítica dividiu-se em duas posições antagônicas: há quem considere o Quixote uma paródia, uma burla, uma sátira às novelas de cavalaria e há quem julgue o contrário, que ele representa uma idealização desses livros” (GAI, 1997, p. 90-91). 

21 Observe-se, porém, que no Romantismo brasileiro, longe de haver uma “disputa” entre a História e a Literatura, esta última, por meio da obra alencarina, sobretudo, pretendia ser “documento da história”, desempenhando o duplo papel de forjar a “nacionalidade brasileira” e conferir identidade à “literatura brasileira”.

22 Como “síntese” dos mundos pagão e cristão, a maravilha portaria a “marca do duplo”, que caracterizou o imaginário medieval e está presente em sua novela de cavalaria mais representativa, “segundo a unanimidade dos especialistas, o maior monumento literário da Idade Média” (MONGELLI, 1992, p. 77): A demanda do Santo Graal. Nessa novela, as lendas do Rei Artur, herdeiras da cultura céltica-bretã, e, portanto, do “pensamento mágico”, se misturam à história do Santo Graal, pertencente ao Cristianismo, tendo sido reunidas pela primeira vez, na França, por Chrétien de Troyes, entre 1162 e 1182 (op. cit., p. 58). 

23 Na relação entre literatura e jornalismo, no Brasil do século XIX, a publicidade – que se tornará, mais tarde, com a utilização dos meios massivos de comunicação, uma “síntese entre a cotidianidade e o espetáculo” (MARTÍN-BARBERO, 1987, p. 307) –, embora tendo como alvo um público restrito, também desempenhava papel importante. Aluísio Azevedo foi um dos primeiros a empregá-la, quando do lançamento do romance O mulato (1881), marco da introdução do Naturalismo no Brasil. Utilizando cartazes de rua e anúncios nos jornais maranhenses A Pacotilha e o O Pensador, a campanha de lançamento do livro foi eficiente: “Em curto prazo venderam-se os dois mil exemplares da primeira edição de O mulato, o que atesta o sucesso da campanha do romance” (FARACO, 2000, p. 8). 

24 Segundo Antônio Cândido, José Veríssimo via nas Memórias de um sargento de milícias  “uma espécie de realismo antecipado”, enquanto Mário de Andrade o considerava “um romance de tipo marginal, afastado da corrente média das literaturas”, com “personagens anti-heróicos que são modalidades de pícaros”, e Darcy Damasceno o denominava “romance de costumes”. Josué Montello, por sua vez, de acordo com Cândido, “fundou-se numa petição de princípio, tomando como provado o que resta provar, isto é, que as Memórias são um romance picaresco” (CÂNDIDO, 1978, p. 317-8). 

25 Para Pierre Boudieu, o jornalismo é a “área de atração para os intelectuais marginais que não encontram lugar na política ou nas profissões liberais” (BOURDIEU, 1974, p. 102). 

26 De classe “relativamente inferior”, os rapsodos, na Grécia Clássica, eram “declamadores que iam de cidade em cidade recitando e explicando os poetas, principalmente Homero. A declamação era geralmente acompanhada por um trabalho de mímica, e sua atuação, remunerada” (FERRAZ, 1999, p. 33). 

27 Para um maior detalhamento dos passos e procedimentos do método cético, ver BERNARDO (2000, p. 135 e 136). 

28 Essa dupla inserção – para Roberto Schwarz, o aspecto por excelência contraditório do Romantismo brasileiro, que gera uma “fratura formal” – constituiria, paradoxalmente, o maior legado alencarino para a literatura brasileira: “De fato, a fratura formal em que insistimos, e que Alencar insistia em produzir, guiado pelo senso do ‘tamanho fluminense’, tem extraordinário valor mimético, e nada é mais brasileiro que esta literatura mal-resolvida (...). Para a tradição de nosso Realismo, é o seu legado mais profundo” (SCHWARZ, 1977, p. 48-49). 

29 Contrapondo-se à filosofia, o Tratado do não-ser, de Górgias, que Barbara Cassin considera uma “paródia” do Poema de Parmênides, constituiria um discurso sofístico cuja proposta é substituir o conhecimento do verdadeiro, do ente, por um “discurso sobre o discurso”, que se aproximaria do pseudos mimético. Ou seja, ao contrário da ontologia, que tem por supremacia a busca da “verdade” do ser, a sofística trabalharia com o “falso”, constituindo-se dessa forma numa espécie de reverso do discurso ontológico. 

30 Outro exemplo da “suspensão” das fronteiras entre a História e a Literatura seria a obra de Lima Barreto. Ambientada nas primeiras décadas do século XX no Brasil, a escrita barreteana funde, “quase que de modo indissociável, o ficcional, o histórico e o autobiográfico” (PIRES, 1995, p. 252), se tornando de suma importância para a memória histórico-cultural da Belle Époque no Brasil. Não obstante tal “fusão”, o escritor “procurou trabalhar suas reflexões sobre os aspectos histórico-culturais e o autobiográfico sem perder de vista o específico literário” (op. cit., p. 253). Ao mesmo tempo, ao defrontar-se com as formas de literatura do cânone vigente, questionando-as e propondo uma modificação das estruturas literárias, a produção de Lima Barreto assume grande contemporaneidade. 

31 O kinetoscópio de Thomas Edison e W. Dickson, inventado em 1889, reproduz o movimento de figuras pequenas e para apenas uma pessoa de cada vez, enquanto o cinematógrafo, inventado pelos irmãos Lumière em 1895, “apresenta-nos as figuras em tamanho natural, podendo ser vistas por um número qualquer de espectadores” (DUARTE, Urbano, apud FERREIRA, Paulo Roberto. “Do kinetoscópio ao omniographo”. Filme cultura, 47. Embrafilme/MINC, ago. 1987, p. 17 – apud SÜSSEKIND, 1987, p. 40). 

32 “Brás e Cotrim, a dupla obscurantista, fazem figura ignóbil à luz do critério moderno. Contudo, a mesma mescla de traços que lhes define o atraso e a comicidade os torna membros respeitáveis, nada risíveis, da classe dominante nacional (...) À primeira vista fazem que pareçam atrasados, por provincianismo ou barbárie, risíveis sobretudo em sua pretensão de serem adiantados” (SCHWARZ, 1990, p. 113 e 119).

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